quinta-feira, 20 de maio de 2021

 

 PALAVRA

  Por: Vannda Santana

Revisão: Márcia Vital

 

...uma palavra é sempre mais que uma palavra.

                                                               (Texto bíblico)

 

Novamente a palavra entra em cena e, no instante primeiro, por ela, sou abduzida. Assim é a palavra: uma constelação de sentidos enredada num entrelaçamento semântico inserido no contexto da linguagem. A palavra tem voz e fala no escrito pelo silêncio da coisa dita. Há uma memória semântica que  faz com que a estada de uma palavra em uma frase a infle para sempre com um sentido particular – contextual – de que ela não poderá se livrar (Ouaknin,1996).

Tal como uma rede de formas diversas e de sentidos múltiplos a palavra memoriza  aquele sentido naquele contexto e para sempre estará memorizado, amplia e abre suas dimensões de funcionamento para uma intertextualidade mais vasta: a palavra é acontecimento na singularidade de sua aparição, aferindo  expansão em ondas. Assim, a palavra toma para si a tonalidade das outras palavras com total riqueza fônica, para formar (um verdadeiro jogo) de infinitos sentidos de linguagem.

Diante de tamanho encantamento pela palavra e de suas infinitas formas de dizer, murmura em minhas ideias o enunciado de um texto e a intersubjetividade do diálogo que se oferece à interpretação. Pode até parecer que é bem mais que um encantamento, sim, é isto. Mas há um ponto fundamental à  interpretação de um texto: ler é compreender o que se esconde nas entrelinhas do pensamento escrito – e é interpretar – sem destruir a mensagem definida no contexto do campo da linguagem. Estes são os elementos necessários para abrir o diálogo.

A palavra reside no diálogo. A palavra habita no pensamento textual e vive em expansão e quer “nascer”, quer vir à tona, mas a ideia rejeita, não acata a dinâmica da mão que  a escreve –  e entre  o pensar e o agir  o texto escrito não é mais o texto pensado – é uma contradição de realidade com o objeto idealizado que se faz plasmar na folha em branco. A criatividade transita nesse coexistir, nesse limiar da consciência e anuncia-se  na contramão daquilo que o pensamento teve por objetivo em registrar mas a mão não quis escrever. Quase sempre, há três poemas:  um apenas imaginado, outro  escrito e um outro lido.  E a palavra desse instante nascida deveras, tem significado no semear de sentidos por fertilizar palavras.

A paixão por palavras toma meu corpo inteiro e invade todo o  meu ser. Desse encanto, surge um viajar essencial por leituras e “letras” descortinando novas palavras que são como asas de liberdade imaginária.

A palavra tem o poder de uma “senha” – e abre a porta de um vazio desconhecido (de si mesmo) para atuar como agente de renúncia desse grau zero de significações. O grau zero do sentido não é nada além de um momento entre a des-significação e a re-significação. Ele é uma tentativa de fazer com que a significação fracasse e, ao mesmo tempo, de expor o próprio fundamento da significância. (Ouaknin, p. 164)

Ao concluir este artigo, senti uma enorme necessidade em  refazer o caminho de volta, relendo a estreita relação do texto escrito com o desejo antes imaginado. Pois é, alguma coisa havia se perdido pelas entranhas do pensamento. A primeira ideia de escrever este artigo sobre palavras, eu não sei em que labirinto psíquico ela se perdeu, pensei um projeto e tenho um outro texto com sentidos inauditos. Entretanto, por algum motivo as palavras seguiram em silêncio e, pelo mesmo critério, elas atravessam a essência do texto e indicam um novo contexto neste escrito como artefato do dizer. Eis aqui as Palavras como objeto do discurso: (...) o sentido pode sempre ser outro, ou ainda, que aquilo que é o mais importante nunca se diz; todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos indicam  que este é fundante (Orlandi, 2007). E assim os sentidos inaudíveis no ato de escrever, encontram eco sobretudo, na forma de relação que a leitura terá com o leitor.

Eis aqui o instante deste diálogo. Diálogo de ex-istência e tempo, segundo Winnicott, para expressar ao leitor que tem sido a (fonte de minha interlocução) para exercer a leitura e ter o domínio da linguagem para então viver grandes acontecimentos.

Boas leituras!

sexta-feira, 23 de abril de 2021

REVISITANDO O ESPAÇO IMAGINÁRIO

Revisitando o espaço imaginário

Autor: Vannda Santana

Revisão: Marcia Vital

 

As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades do ser.
Mircea Eliade

 

Pois é. Em tempos tão sombrios sentimos a imaginação escassear. Por mais que tenhamos a consciência  de nosso corpo físico e de tudo  que nele habita, ainda assim nos falta a compreensão da coisa principal:  ação. Por isso mesmo revisitei meus espaços internos e externos à procura de fazer algo que pudesse incentivar movimentos de ideias adormecidas para espantar os fantasmas guardados em alguma gaveta imaginária.

Então, lembrei-me de um livro do filósofo G. Bachelard - A Poética do Espaço, onde o autor faz uma análise de forma criteriosa dos espaços e lugares, realçando o campo da memória como lugar de criação e reflexão das imagens guardadas ao longo da existência. Daí então, decidi revisitar também os meus próprios porões em busca de algo que trouxesse luz aos pensamentos (no momento atual) bafejados pela desordem de dias tão sombrios, sem criatividade e sem perspectiva de um amanhã menos triste, resta-me então, abrir as gavetas do meu palimpsesto de lembranças felizes.

Sendo assim, vamos viajar um pouco na obra citada. A Poética do Espaço  nos leva para o lugar da imensidão do espaço íntimo, lugar  da imaginação, do poético, da fantasia e do sonho, mas também da solidão. Nas palavras do autor: Quando a grande solidão do homem se aprofunda, as duas imensidões se tocam, se confundem.   Através do viés dessa realidade o espaço físico ganha uma dimensão histórica, elegendo imagens que transcendem a materialidade de casa, abrigo, porão, sótão, cabana, armários e gavetas. As representações simbólicas vão além da preservação das lembranças guardadas em nossas memórias como o lugar dos maiores registros de toda uma vida: dos medos, da insegurança, dos fracassos, mas também, lugar das vitórias onde reinam as fantasias e os sonhos e os mais ardentes desejos de conquistas.  E é nesse mundo onírico simbólico de castelos e sonhos que vivem príncipes e fadas, heróis e bruxas como ícones de representação da existência humana, metáforas necessárias para vivenciar o enfrentamento com a realidade e suas intranquilidades.

 A obra configura-se como um tratado poético e as imagens, a partir de diferentes espaços constituídos, são extremamente recorrentes na literatura, acendendo luz à imaginação.

Essas imagens emprestam corpo simbólico ao lugar onde permanecem guardadas por longo tempo, quer seja num sótão ou num  porão, não importa; elas são a representação da realidade e podem ressurgir na memória como fuga ou lugar de refúgio e podemos compreender essa imagem que surge das profundezas da memória como espaço sagrado, espaço da imaginação, da emoção e dos sentimentos, espaço da arte preservado pelo tempo passado, onde subjazem os devaneios.

Assim, as imagens se revestem de boas ou más  lembranças e adquirem um papel principal como arquétipo de uma peripécia qualquer e é essa a função do espaço poético na obra de Gaston Bachelard.  A preservação do abrigo, do espaço feliz ou de uma percepção de proteção contra todos os perigos. Daí, surgem como exaltação as boas  lembranças. Bachelard foi um adepto da arte pela arte, do entregar-se completamente ao momento da leitura. Nas palavras dele, a arte é “uma reduplicação da vida, uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem de cair no sono”.

Aos amigos leitores, perdoem-me se não pude presenteá-los com uma leitura de fruição. Pois no exilio dos meus dias, nenhuma imaginação feliz veio visitar-me como produto de criatividade. Perdoem-me se nenhuma leitura foi capaz de seduzir-me ao encanto de um novo poema ou um texto que pudesse ocupar o espaço interno de cada leitor.   E é aqui que me encontro à margem da história vigente e me vejo tão somente com meus escassos pensamentos que ora vivem em  turbulências. Mas certa estou de que tudo vai passar, creiam.  

Por enquanto, apresento este texto atrelado à A Poética do Espaço de G. Bachelard. Mas deixo um convite muito especial: leiam o Livro A Poética do Espaço para uma verdadeira viagem de reflexão fenomenológica.

 

Referência:

BACHELARD, G. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993


domingo, 1 de março de 2020


A semiótica do olhar e suas linguagens: um recorte no modo de ver para além do visível

Professora: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital

Las Meninas, Diego Velázquez 
“Se eu deixar de ser poeta, morre em mim um pedaço de existência e, comigo, morre de certo modo, (o sentir como forma de ver); pois para o olhar do poeta, o alvo é tudo aquilo que ele vê e sente.”
Vannda Santana (inédito, no prelo)
“A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível”.
                                                                                                                                                        M. Foucault
 


Admirar uma obra de arte é sempre uma experiência estética e agradável; uma prática inovadora que exige um constante exercício para um olhar especial. A diferença fundamental consiste no modo de olhar e no modo de  ver, um processo puramente físico, mecânico, perante as coisas vistas do mundo que nos rodeia. Esse olhar exige um leitor que saiba ler e ver os critérios que deverão passar por essa “lente” tão superior, capaz de revelar nesta observação a expansão de uma percepção aguçada do mundo sensível, mostrando relevâncias pictóricas para além do visível.
Portanto, é nesse Ver e é nesse Olhar que se fundamentam as diferentes formas de ver, diante das funções pelas quais se manifestam os sentidos de significação: há um olhar que simplesmente vê e nada registra e um outro debruçado em emoções sobre o prisma daquilo que, com sentimentos, pode conduzi-lo ao ato de refletir.
 Essas são algumas das tarefas intrínsecas desse órgão foto‑excitável, fotorreceptor e sensorial, tudo executado ao mesmo tempo, o qual se nutre pela sensibilidade da luz por ser fotossensível. E o olhar é uma janela translúcida pronta para  transmitir e focalizar a luz dentro do olho. Não é por acaso que se diz que o olho é a janela  da alma  por captar e suscitar  emoções. Mas existe também uma função no olhar que se propõe divergir de outras perceptivas; e sua finalidade é a  de discernir e de interpretar ao ser filtrada na memória diante das coisas capitadas vistas no mundo externo.
 Sobre essas formas de ver e olhar, também há algumas restrições de acordo com cada  cultura. Por mais ampla que seja a forma do olhar, há um limite cultural impondo sua doutrina específica. É nesse limite que se enquadra a prática da observação, dos sentimentos, do conhecimento e da cultura geral de cada povo. Daí por diante, conclui-se que o olhar tem muito mais a dizer daquilo que vê sobre o alvo observado, que pela capacidade puramente intelectual.  O olhar que se destina ver aquilo que está exposto dialoga com suas pré-condições emocionais. Nem sempre o foco se abre para o alvo de uma mesma forma; para além do olhar, resta uma indagação: quantas são as leituras direcionadas sobre o mesmo matiz em exposição?

 Não há leis nem regras que possam subordinar os modos de olhar ou ver um objeto de arte. Seria possível afirmar que cada pessoa tem um limite para cada visão, mas não para o limite imposto pelo defeito e, sim, pelo limite perceptivo, o que “intui”. Essa capacidade intuitiva do sujeito amplia a forma de ver com as cores que envolvem o sentir. O olho humano não está sozinho nessa caprichosa arquitetura no modo de sentir com o olhar.

Por isso, pode-se dizer que o olho físico esconde por trás do olhar muitas incógnitas e muitos mistérios:  olhos que pensam, olhos que sorriem, olhos que choram. Podemos até arriscar alguns devaneios  ao imaginar: o que  pensa aquele olhar distraído e que  mensagem a pintura expressa  quer falar àquele olhar que a vê?

A semiótica do olhar não busca encontrar definições prontas para as questões fisiológicas do olhar.  Este esboço, nada mais é do que  suscitar uma reflexão sobre a Fenomenologia da Percepção (2006)[1]: sobre o que o olho pode ser capaz de ler, ver, sentir e falar, diante do objeto observado. Essa releitura do ver, sob a ótica do autor, levou-nos a compreender o fenômeno do aparelho perceptivo, para além de um olhar. Visto que há vários olhares: olhar de contemplação, olhar perdido que vaga na imensidão, olhar de desprezo, de conquista, do safo, olhar de esperteza, do moribundo e o olhar de ironia que tanto valor empresta à literatura.

 O objeto como fenômeno, nesse contexto do olhar, emerge em especial diante da obra de arte, capturando as várias formas e os sentidos refletidos no olhar do objeto a ser observado, assim como, as várias formas do observador ao observar o objeto. Podemos ainda dizer que o objeto (obra de arte) sujeita-se ao enigma do espectador “ o que se quer ver”, pois  há sempre um modo de sentir aquilo que o olho quer ver. Assim, há sempre  uma verossimilhança e uma mirabilia para cada olhar que “olha” e um olhar para cada individuo. Pois, assim sendo, por trás de cada olhar existe um investimento para cada olho que vê em função de sua cultura.

Tomemos como releitura de análise o quadro de Velázquez - As meninas, apenas como proposta de observação do modo de como o artista vê a realidade – ao mesmo instante, como o observador vê o mundo que o rodeia.  A  Fenomenologia da Percepção no capítulo sobre O Corpo, Merleau-Ponty afirma que: Ver é entrar em um universo de seres que se mostram.   Talvez, esses olhares não os definam ao representar aquilo que vêem, mas ainda assim, como querem ver. O quadro a que nos referimos é uma pintura de 1656 do pintor Diego Velázquez, principal artista do Século de Ouro Espanhol. A obra de proporção gigantesca do estilo Barroco é  considerada uma das mais importantes da História da Arte e  trata-se de uma composição complexa vastamente comentada por vários observadores. O quadro As Meninas levanta várias questões e deixa algumas indagações sobre o que é realidade e o que poderia ser ilusão, criando dúvidas entre o observador e as figuras ali representadas. Há comentários de que Velázquez “pintava o ar” por ser ele um profundo pesquisador de óptica, tendo debruçado sobre livros específicos onde foi buscar conhecimentos que puderam alicerçar  sua prática na conquista de conseguir melhor resultado entre as distâncias, luz e outros agentes que exerciam sobre as formas e as cores em sua pintura.

Diante do exposto, fica a proposta para um desafio no futuro: uma análise e um debruçar diante do enigma que o olhar oferece como estudo da fenomenologia na observação da obra de arte. E assim, enredar pelo caminho subjetivo a qual a percepção de Merleau-Ponty nos convida. Consciente de que a percepção vai muito além dos sentidos, pois, através dela, tem-se um corpo e uma fisiologia que habitam todos os olhares com suas subvertidas formas de ver.  Assim, sendo, a palheta está para a pintura do artista, assim como o sentido se predispõe a subverter o olhar que olha o objeto.

 Desses olhares, ficaram em mim profundas indagações quanto às dimensões da semiótica e do olhar. Aqui neste ensaio, não foi possível esgotar seu  “todo” para  alcançar o objeto da escrita. Porém, o desejo maior se enquadra numa certeza de ter lançado dúvidas que possam ressoar como âncora para uma posterior análise. Assim, objetiva-se continuar a viagem nessa temática sedutora que a semiótica nos provoca ao navegar por essas profundezas da fenomenologia. Portanto, continuar a esmiuçar o olhar a partir das ideias: investigar os sentidos e não somente aquilo que se vê, mas o que se pode sentir com o objeto visto.



[1] Maurice Merleau -Ponty. Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes. São Paulo,  2006

terça-feira, 22 de outubro de 2019

MANHÃ DE OUTONO

Manhã de outono
Por: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital


Numa manhã de um  outono tardio, um  fog  serrano (quase londrino) passava lá fora veloz e,  entre nuvens  brancas e  maciças, parecia se diluir aos poucos. O fenômeno representa quase um prenúncio de uma densa chuva  fina e fria  (chuva invernal),  cuja  jornada de passagem   invade as  brechas de qualquer lugar,  de pessoas e coisas. Além de um véu branco pronto para umedecer a alma de tudo o  que alcança.  E não falta nesse cardápio um forte vento uivante ao registrar suas peripécias por onde passa ao deixar sua marca similar tal qual a de um fiel  discípulo – o de   aprendiz  de tufão; mesmo sendo em escala inferior, não dissipa o terror de sua ameaça – de fazer   gemer  fibras de  portas e janelas, derrubar árvores e destelhar casas, gerando uma certa impotência  no silêncio de cada um diante do espetáculo exibido pela natureza.

Assim, os dias se alternam entre os ruídos e silêncios (nada indeléveis) de sons inusitados. Nesse período do ano, anuncia-se o tempo das águas revoltas, de chuvas ameaçadoras que prometem despencar montanhas abaixo carregadas de tudo o que encontrar pela frente. São dias e momentos tenebrosos. Porém, há também a calmaria de dias infindáveis, de lua e estrelas radiantes com que os céus vizinhos nos brindam, mesmo que distantes.
  

Pois é. Assim, vive-se uma fantasiosa percepção de todos os sentidos (bons e ruins) num único instante: ancorando-se em  aguçadas visões de estranhas pareidolias, que vão muito além de céus  de nuvens negras com seus sinistros cumulonimbus aos céus azuis de cirrus de cristais com seus desenhos aquarelados. Nesse cenário de intemperes, a poesia pede licença e um balé musical entra em cena: cortinas esvoaçantes  são vestes no ritmo dos ventos ao som da Valsa  das Flores de Tchaikovsky.  Vibrações minúsculas se mesclam diante de uma imaginária orquestra – até  o replicar de sinos pendurados nas varandas complementam o espetáculo, obedecendo a batuta dos ventos.

 E assim, a imaginação ganha status de realidade em desafiar o supérfluo ao narrar ideias que possam adquirir formas de viver a contemplação para driblar a solidão. E tendo Deméter, a deusa da vegetação,  poupado a  vida dos grãos, concedeu-lhes a cada três meses do ano  uma nova troca do figurino de campos e pomares, para celebrar as quatro estações.  E entre esse vislumbrar o belo de cores e arco-íris, vive-se também o arrepio de uma inquietante intuição – a angústia de uma poderosa ameaça íntima, de uma certeza nostálgica, de uma convicta sensação de que a vida é parte dessa natureza que vive seu tempo no calendário da existência humana.

 Assim sendo, não devemos chorar por nada que a vida nos traga ou nos leve. As expressões de viver alguns instantes o pesadelo dessa observância circunstancial, por vezes, acende o alerta do instinto da dramaturgia em um de seus momentos: psicológico, dramático e ou artístico, bem à moda Pessoa. E cada um vive o que lhe cabe por conveniência, embora exista circunstância em que não há tempo para escolher, principalmente quando o “depois” chega sem anúncio prévio e resolve tudo silenciar.  E eis aí o silêncio como significação paradoxal para o ato de perceber e não o de falar; é o de sentir e não poder exprimir por saber que nem sempre o ser humano é só instinto. A essência do silêncio abraça o paradoxo e não paralisa o movimento  em sentir a proximidade desse “agora” inexplicável. Assim, apressadamente,  esse agora tem voz e representa o mistério de  (um “antes”). Em suma: o agora é a antecipação  pelo medo do “depois”! E nessa tormenta delirante, surge a pergunta:  o que seria o depois  se ele já é manifestação real no presente? E o agora? O que fazer desse agora, se o agora não se faz  visível, pois se ele vive além da curva?  Claro está que aquilo que não se vê, por estar  longínquo, aparentemente,  repousa no imaginário do existir pela cópia desbotada do “antes”.   Antes? Antes do quê? Esse antes é o nome precário da imortalidade  a qual se imaginou uma vida inteira! Mas não se trata de um pessimismo ou uma mera reminiscência daquele que ingenuamente vislumbra a eternidade pelo viés do passado. O antes, o agora e o depois são linguagens do silêncio, são vozes do silêncio que prenunciam aquilo que as lembranças trazem em formas de nostalgias com pinceladas de lamúrias escritas. Talvez, isso possa significar o ruído das ideias em busca de um ato intelectual criativo, para dar forma artisticamente ao vazio criado pelo silêncio.

O ato de ser só não significa estado permanente de solidão. Porém, quando se está só – a observação sobre a vida ganha relevos distintos e sentidos inusitados: ora, revelando matizes bem apropriados (com o agora de cada existir) e ora, permitindo a natureza psíquica revelar o que há em cada ser; e, nesse concílio de formas de pensar,  tudo ganha uma outra dimensão. Os aspectos mais sutis se tornam densos e se elevam às potências inimagináveis de onde surgem tais manifestações, advindas da natureza externa e interna.  Saibam: há um céu límpido e um céu tenebroso em cada ser. E essa pulsão de vida torna-se variável do antes com permanência efetiva no depois ao mesclar de incertezas o agora.

Assim, desse momento solitário – tão comum ao escritor, somente as palavras serão capazes  de ressoarem no silêncio de onde nasceram, e,  em voz silenciosa, serem hóspedes  na escrita. Por isso, desse agora ainda que banal, porém  invulgar, inaugura-se esse imprint de pensamentos –  matéria prima de tormentos; produtos desvelados e não destinados para um  olhar qualquer – mas para o olhar poético que ainda pode ver aquela estrela distante, quase se apagando, mas que ainda teima em brilhar, mesmo que nenhum olhar a alcance. Assim, a vida aqui na terra também marca sua existência luminosa: todos nós vamos perdendo dia após dia um pouco do nosso brilho sem que ninguém nos alcance.   

segunda-feira, 26 de agosto de 2019


Porque você não consertou a cabeça do seu filho?



Pois é! Para muitos, esta é uma pergunta para a qual não há resposta. Eis aí uma temática que, talvez, permaneça em silêncio no limbo da memória dos tempos – até mesmo naquelas mentes mais brilhantes na esfera do conhecimento humano – essa resposta ficará ad aeternum em silêncio. Nenhum pai, por mais conhecedor que seja sobre um assunto específico, dará conta de resolver em lócus  (o problema de seu filho: principalmente, por razões éticas). Além do problema de ligação afetiva, presente na singularidade do existir, impera-se a responsabilidade. Diante dessa eminência de realidade que obrigue um pai ou mãe se colocar em evidência profissional, a experimentar suas certezas científicas, surge então a dúvida: crenças e incertezas colidem para anular qualquer gesto ou ação. Não surpreendem atitudes dessa natureza, dentro da frágil condição humana. Por definição, a  natureza tem seus métodos realizados de modo empírico;  eis aí o principal elemento que compõe a caixa preta da existência: viver a vida!

Por uma Lei sagrada, nascemos. Por princípios e por caminhos ínvios, caminhamos. Porém, ao nascermos, trazemos apenas um mapeamento genético. É bem verdade que, em muitos casos, esse mapeamento genético pode ajudar. Todavia, faltou um manual quântico que pudesse decifrar o sistema complexo, composto por células que se ligam universalmente umas com as outras – em todos os sentidos (interno e externo) – de informações e comunicações simultâneas, segundo o biólogo (LIPTON,  2007). Mas esse entrelaçamento celular de comunicação não nos dá a garantia de nos conhecer a nós mesmos. E não certifica qualidade para conhecer o outro! Dentro desse critério, a existência passa a oferecer uma leitura incógnita, a saber: cada ser é único, cada indivíduo é um livro que se abre às indagações, com mais perguntas que respostas. Dentro dessa imensa rede chamada VIDA, vive o ser humano em busca de se encontrar – e, nesse emaranhado, arrisca-se em trilhos e fios; por mares e rios; montanhas e vales – a fim de viver o inesperado daquilo que lhe é cabível.

Então, voltemos à pergunta: porque você não consertou a cabeça de seu filho?

Conheci médicos, professores, engenheiros, psicólogos, arquitetos e um acervo enorme de profissionais de várias áreas do saber científico, no entanto, a conceituação de tal pergunta, deriva para o processo de princípio analítico. A grande questão é: aquilo que foi previamente dito, e, depois longamente sinalizado,  pode vir a ser o sintoma, que, até certo ponto, nos parece  entendimento simples. Entretanto, nem todo sintoma se apresenta de forma clara e verdadeira com objetivos afirmativos. Obviamente, há casos específicos de comportamentos psíquicos. Há alguns casos que se revelam com um determinado sintoma e no decorrer do tratamento outros processos sintomáticos chamam à atenção do profissional ao perceber que se faz necessário aliar ao tratamento uma terapia de acompanhamento multidisciplinar e sistemático. Isto é, para dar clareza científica ao assunto e dissipar dúvidas comportamentais. Desse modo, não é fácil trabalhar questões e problemas que se apresentam sem amplo conhecimento de causas. Às vezes, essas causas estão  tão presentes nas estruturas da base familiar ancestral, e tantas outras, vivem na eternidade camuflada no seguimento desse novo ramo da ancestralidade do indivíduo. E são essas estruturas que irão formar ou deformar; são elas que indicarão o vetor do descontínuo de uma identidade, apontando para o ápice de uma fragilidade sem par.  Ao mesmo instante em que o indivíduo busca o ajuste da personalidade individual, ao lado dele encontra-se a  família extremamente remexida. O tratamento nem sempre é aceito pelo próprio indivíduo. Além disso, tem de haver comprometimento com a verdade dos fatos para bons resultados. E, sendo assim, na outra ponta, intermediando a situação, encontra-se o profissional atento à escuta. No caso em questão, conta-se também com os conhecimentos específicos, aliados à observação de um registro catalogado segundo os ditames dos anais do (DSM- Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) onde procura  manter bem atualizado os dados clínicos.  Mas ainda assim, surgirão infinitas dúvidas.

E a resposta para o tema? Para certas perguntas não há respostas. A repetição se faz necessária. Ainda que se procure na lógica dos fatos, algo pronto para satisfazer brios embaçados de egos altamente feridos, há que se rever caso a caso. Ainda assim, não se exclui o núcleo dessa célula mater – há uma mãe que é parte desse outro, e, por esse outro, essa mãe viverá ou morrerá – e,  há muitas outras mães sofrendo tanto quanto ou mais que a vítima desse episódio. Há uma cegueira visível cúmplice de aliados desejos egóicos em determinadas famílias, passando pela discriminação dentro da própria casa.

 E, por isso, há uma dor indescritível, indelével e, sem diagnóstico, afetando o ar e o riso, o corpo e a alma de MÃES de qualquer lar.

Portanto, não culpe o outro por algo que deu errado (seja um sintoma ou uma doença que se desconheça). Não coloque perguntas em lugar de respostas: pois tudo pode ainda ficar pior. Não se cobra acertos (pessoais) culpando gerações.  Não culpe uma Mãe por aquilo que seu filho deixou de atender aos olhos da sociedade. Não julgue para não ser julgado naquilo que é desconhecido. Por último, dê AMOR ao invés de culpar às (diferenças singulares). A maior falha humana está no modo de julgar  e, não  querer ver – que a maior virtude está no modo de perceber – de ver o belo que se apresenta em pequenos gestos.

Amar pode curar! Amei e amo sem recuar qualquer gesto de infinita doação! Amei sem prévio saber. Amei sentindo e amo sem discriminar. Amo o amor que surge do nada, que nasce do aprendizado de uma vida anunciada. Eis aí a minha forma de amar meus filhos: aceito com dignidade os erros e acertos, pois, o maior bem que vive em mim, nasceu  em meu peito quando eles de mim nasceram. Sinto a vida e o pulsar do poder de ter sido mãe e de ter oferecido mais do que tinha e o melhor que podia. Nessa entrega de mim mesma – me permiti ser alimento e – até  a minha alma cedi como abrigo daquilo que não dei conta.

Assim, diante do mais sagrado retorno à consciência, exalta-se na pele a humilde representação vincada por vivências – relevos e sulcos formam cicatrizes que ainda sangram – revelando a incompreensão (razão ignota) de reações espontâneas do que não deixei de ser ou de fazer. E com o passar dos tempos,  na certeza do dever cumprido, sobram apenas desgastes. Talvez, alguma pergunta ainda escape: o que me resta fazer? Será que errei mais e acertei menos ou ao contrário?  Em nome do  AMOR, fiz o que deveria. E a certeza desse sentimento virou recompensa. Hoje, posso comprovar na singeleza de cada olhar de um filho o amor despretensioso expresso em ternura. E isso basta!

Este escrito não pretende ser nenhum compêndio, ele quer sinalizar o vírus inserido na palavra. E a palavra pode ser capaz de exercer em sua língua mater  mil sentenças em uma só narrativa. Portanto, quando um desavisado  lhe enviar uma palavra de sentido culposo – devolva-a aos ventos – pois esta é a dor que seu corpo  desconhece.

Não ame alguém pela condição de ser! Ame sim, pelo SER que essa pessoa é. E diga não aos diagnósticos indefinidos. Confirma o SIM em nome do AMOR e pelo AMOR definitivo!.  

terça-feira, 2 de abril de 2019

O desejo de não-crescer


O desejo de “não-crescer”

Por que algumas crianças expressam um claro desejo de “não-crescer”? Talvez tenhamos de observar com maior rigor o que estaria acontecendo com aquela criança  durante seu processo de desenvolvimento?  Sabemos que  durante a infância toda criança recebe uma enorme quantidade de informações que acontecem  a cada instante do seu desenvolvimento de aprendizagem. Nesse momento, o percurso normal dos pequenos passa por uma alteração física e, às vezes, emocionais.  Daí, os obstáculos que se apresentam rumo ao futuro entre a infância e a adolescência, são  capazes de modificarem literalmente, as estruturas comportamentais, alterando os hábitos que são repentinamente mudados, afetando o humor. Até aquele instante onde o compromisso era só brincadeiras, sem aviso prévio, surgem as mudanças nas quais se instalam  as obrigações dos estudos, juntamente com o rigor das tarefas imprimindo responsabilidade.
 Não há uma receita pronta. Os dias não se anunciam no calendário imaginário da criança e, muito menos, na visão dos pais. O processo é muito rápido e não há tempo de uma preparação psicológica para que todos possam enfrentar os novos padrões de exigências diante da nova fase que se apresenta com mais cobranças. Se, além do novo status de aparência física, ainda surge um outro vilão para concorrer com aquelas dificuldades já existentes, permeando o aprendizado, como é possível a criança não  reagir diante desse turbilhão de acontecimentos desde os psíquicos, físicos até aos materiais?
 Assim, os processos atribuídos às crianças ganham rótulos diversificados por comparar: compara-se tudo, tamanho e idade, condições sociais, casa, escola, objetos pessoais. Enfim, esses problemas surgem advindos da pouca confiança na qual a criança deposita em si mesma. E esse quadro ainda pode piorar quando o perfil daquele que se vê comparado lado a lado (com o outro) –  quer seja pelo tamanho físico de um de seus coleguinhas,  ou pelo intelecto –  metáfora significante para mostrar o tamanho da própria insignificância – medida de sofrimento causada pelo do bullyng. Nesse momento, a soma dos itens que trazem frustrações é grande, desde o desejo não realizado pela falta dos objetos pessoais até o distanciamento da realidade com relação a escola do  outro que entra no script para qualificar o sucesso ou o fracasso, onde o ensino mostra sua diferença pontual.
Desse modo, como evitar frustações que são tão danosas em idades tão tenras? E o que os pais deverão fazer para atenuar esses sentimentos que causam tanto sofrimento e podem se  manifestarem através de um sintoma, de uma síndrome ou até mesmo (no futuro) em um transtorno?  Tendo em vista tais condições, proponho uma observação severa e investigativa por parte dos pais e dos professores, para avaliar evidências presentes no complexo campo educacional, rever as tarefas de atribuições do currículo do professor  que terá de ser cumprida com segurança, mas sem afetar o aluno que já vive uma sobrecarga (às vezes), desnecessária.
Assim sendo, acredito no apoio psicopedagógico como primeira linha de observação para tratar possíveis causas sintomáticas, antes que elas surjam como processos traumáticos, impedindo a criança de avançar em seu desenvolvimento de aprendizagem.
 Pensando na proposta curricular do professor, faço um questionamento: por que até agora, em pleno século XXI, não se propôs um estudo psicanalítico mais abrangente a vir a ser inserido, no contexto do conhecimento pedagógico para alicerçar o saber do professor em suas diversas áreas do ensino, oferecendo suporte de apoio tanto para o aluno quanto para o próprio professor?  O acréscimo do conhecimento  psicanalítico na formação do professor, independente de ser ele psicopedagogo ou não. Ampliar essas possibilidades geram recursos e subsídios ao professor. O conhecimento dessa prática analítica auxilia o ponto de vista da observação para melhor direcionar o problema. Eis aí o que disse Perrenoud: “Fornecer apoio integrado para os alunos com grandes dificuldades (...) Dominar um procedimento clínico (observar, agir, corrigir, etc.), saber tirar partido das tentativas e erros, possuir uma prática metódica, sistemática” [1].
Acredita-se, ainda, que, dessa forma, as tarefas gerenciadas com maior cautela por parte do sistema de ensino possam trazer benefícios consideráveis tanto para o aprendiz quanto para o professor. Por essa razão, o professor é a pessoa mais autorizada nessa investigação pelo tempo que ele mantém na relação de binômio professor-aluno. Diante dessa afirmativa,  o professor estaria habilitado para detectar  comportamentos sintomáticos e providenciar o encaminhamento quando necessário, para profissionais qualificados dentro da função indicada. De certo modo, a psicopedagogia já vem atuando com sua epistemologia no campo da neurociência cognitiva, aprimorando conceitos e  estudos dos diferentes ramos do saber científico, buscando através dessas teorias e práticas, avaliar a validade cognitiva, as trajetórias evolutivas, os paradigmas estruturais de cada caso com as relações implicadas na história da aprendizagem e os problemas do não-aprender. A teoria da ciência psicopedagógica pode ser capaz de ceifar desajustes emocionais na escola para se evitar os transtornos futuros com a aprendizagem.
 Pode até parecer utópica e um tanto otimista tal proposta,  mas ainda é possível acreditar que a única solução capaz prevenir os problemas da aprendizagem estaria depositada em dois pilares bem distintos: pais e professores. Mas sabe-se, também, que o professor dos dias atuais, estaria sobrecarregado de suas atribuições (mais que pedagógicas),  com múltiplas responsabilidades, e sem o reconhecimento devido. Por assim dizer, falta a esse profissional o privilégio que fenece a cada dia no mito de um dia passado, não muito distante: o conceito de respeito e sabedoria.
Mas ainda assim, é para o professor que estará depositado as projeções alheias acompanhadas de algum modo, pela admiração de alguns poucos. Porém, não lhe faltará o desejo de alcançar o alvo e esse profissional não ignora o lugar que lhe é outorgado pelo seu aluno, mas há algo maior no desejo do aluno que o faz conferir esse lugar  ao professor como uma possível transferência do desejo de ser: ser um dia o mito de ser igual ao professor.
Para que a aprendizagem aconteça,  será importante relacionar o par de palavras: objetividade e subjetividade e avaliar suas implicações tanto positivas quanto negativas. Entretanto, se estas ações não estiverem equilibradas de modo a proporcionar uma aprendizagem adequada, uma dessas palavras poderá recair sobre o sujeito e, sobretudo, com uma carga semântica negativa, mas que também pode ser positiva. Portanto, o binômio professor-aluno estará diretamente vinculado a esses processos de aprendizagem: o sucesso de um será a realização do outro.
Acreditamos que só através do educador o aluno poderá depositar seus reais valores emocionais  e vivenciar o real educativo sem sofrer os efeitos da subjetividade. Por isso, essa referência na relação pode ser validada: quanto mais positiva e objetiva for a relação de transferência, maior e mais efetiva será a resposta nesse contexto relacional.
 Esta proposta sugere rever os atos educativos ao direcionar o foco para atingir o que afeta a aprendizagem naquilo que estaria gerando negação ou subjetividade às crianças, pais e familiares. O alvo a ser atingido é  a  desconstrução de mitos negativos e subjetivos sobre os problemas da educação e da aprendizagem. O fenômeno (aprendizagem) confere a muitos um prazer de saber e, em tantos outros, uma aversão em todas as idades. A aversão ao ato de aprender, atualmente, vem ganhando espaço em observações clínicas e psicopedagógicas, o que, de certo modo, faz nascer uma constelação de teóricos que passaram a investigar e a atuarem nesta linha de pensamento. Conferimos o que nos diz Sara Paín: “A objetividade instaura a realidade, isto é, aquilo que nós consideramos real, que está fora de nós, cujas leis não podemos modificar. Podemos repensar, mas não podemos anular essas leis. Por outro lado, o subjetivo se instaura na irregularidade,...” [2]
Não se pode abstrair da palavra aprendizagem o desejo de saber. A coexistência do desejo de saber é uma realidade da relação de aprendizagem que existe entre professor‑aluno e aluno-professor e é somente através do desejo – desejo daquele a quem o conhecimento falta – que estaria o desejo do professor de ensinar, pois, de acordo com Lajonquière (1999, p. 141), "todo adulto educa uma criança em nome do desejo que o anima.”
O discurso psicopedagógico apoiar-se-á  na estrutura da epistemologia psicanalítica, servindo-se dos instrumentos científicos indispensáveis à linha teórica e discursiva desta escrita.
 Neste processo teórico, prioriza-se a necessidade de se repensar as bases estruturais da prática do ensino no contexto da aprendizagem, destacando-se a observação de casos de crianças que, durante o ato de aprender, apresentavam uma síndrome resvalando no limiar de um certo tipo de transtorno.
Esta investigação é o resultado de uma longa jornada pelos caminhos da educação psicopedagógica e, através dela, surgiu, então, como conseqüência inevitável, a pesquisa: fonte de observação como objeto de estudo para o doutoramento. Dessa vivência teórica de sala de aula, pode-se aliar à escuta psicopedagógica  longos anos  do exercício da prática docente. Daquela vivência, pude  ouvir queixas de professores e pais de alunos sobre as diversas dificuldades de aprendizagem.

Naquele momento, minhas observações só se articulavam em torno das dificuldades da criança no ato de aprender, mas sem a generalidade que tão comumente os mais leigos costumam verbalizar a respeito da não-aprendizagem. Então, os tipos de queixas se apresentavam com manifestações bem diversas e envolviam todo percurso do desenvolvimento cognitivo da criança no que se referiam às questões de aprendizagem e sua problemática: em todos os discursos e queixas, o transtorno era o mais discutido. Percebi que a palavra transtorno era muito comum nos discursos daqueles professores que, naquele instante, eram, também, meus alunos. A palavra transtorno, para eles, possuía uma conotação semântica diferente daquela do sentido real da palavra. Percebi a urgência em desfazer equívocos. Tivemos então, de intervir para desfazer o engano das múltiplas distorções quanto ao emprego dos termos: síndrome e transtorno, além de outras dúvidas que surgiam no decorrer das aulas.

Mas aquela intervenção não surgiu do acaso. Ela trouxe uma reflexão que deu origem a esta abordagem sistêmica na forma de avaliar, de inferir e de abordar  um tal sintoma: a palavra transtorno ganhou uma síntese e passou a pertencer a um glossário condizente aos critérios patológicos.

 Os processos sintomáticos adquiriram respeito por parte dos meus alunos‑professores e passaram a ser por eles avaliados sob uma nova ótica. A partir daí, esse assunto tornou-se objeto de estudo e, nesta investigação, apresenta-se, ao ser construído, não mais como um conceito, mas como um objeto epistemológico.

 Porém, de imediato, surgiu a inquietante reflexão: por mais que os assuntos ligados à problemática da aprendizagem fossem atendidos em suas carências, ainda nos restavam mais dúvidas que certezas. E por mais que os profissionais da saúde e da educação se dedicassem à temática numa tentativa de dar conta ao se desdobrarem sobre a questão, ainda assim, o quadro de carência sobre as dificuldades de aprendizagens era maior e o resultado dessa prática refletiria em nós como insuficiente.

 A  psicopedagogia  surge em meio ao  impossível para se tornar ciência metodológica possível, uma espécie de âncora em meio às turbulências dos problemas da aprendizagem que afetavam a educação. Com o decorrer do tempo, investigadores como Jorge Visca, Alícia Fernandes, sara Paín, Nádia Bossa, Maria Lúcia L. Weiss, entre outros pesquisadores da psicopedagogia institucional e clínica, empenharam seus nomes às divulgações teóricas. A partir desses eventos, a psicopedagogia tornou-se referência para educadores, psicólogos entre outros e uma recorrência acadêmica frente às dificuldades de aprendizagens.

Daí, talvez, tenha nascido o desejo de transformar o binômio professor‑aluno e aluno-professor em um material de estudo observacional diante da subjetividade que a aprendizagem, até certo ponto, oferece como instrumento de estrutura empírica: possibilidades de pesquisa para um aprofundamento nas questões da aprendizagem no que se refere aos transtornos; entretanto alguns elementos de aprendizagens fugiram do controle e quiseram se transformar em novas aprendizagens nesta releitura de escrita acadêmica. Confesso não era essa a minha idéia,  mas quando o tema surgiu por imposição de alguns dos meus alunos do curso de pós-graduação em psicopedagogia, lógico que fiquei tentada de certa forma a colocá-lo  em prática.  Porém, para dar continuidade a uma proposta com tamanha exigência e do tamanho da responsabilidade a que se submete a questão da aprendizagem com o seu teor de subjetivismo, penso ser esta tarefa um tanto ousada para quem está apenas iniciando o caminho. De certa forma, a ousadia imperou e a escrita quer se fazer presente ainda que longe de alcançar relevância científica, tentando revelar neste objeto de estudo o pouco que se pode abstrair - das muitas e importantes histórias de aprendizagens - histórias de “outros” que puderam ser ouvidas  e que, aqui neste escrito, se entrelaçam com a minha própria história ao percorrer este caminho que até certo ponto, é puramente solitário, pois a  natureza investigativa assim exige para descrever o escrever do Stricto Senso.

Convicta de estar diante de uma tarefa nada fácil, ainda assim, propus-me à caminhada científica. Acreditando encontrar eco naquelas vozes daqueles (outros) que um dia no passado me fizeram crédula, a ponto de inflamar-me o desejo, o qual hoje domina toda a minha existência nas formas de pensar a educação e o sujeito como um “edifício em construção”, embora saiba que cada peça desse ser chamado  edifício em construção, metáfora precária de “evolução” para emprestar um nome ao sujeito enquanto aprendiz, quer referir-se ao desenvolvimento do aprendente.  Esse sujeito aprendente terá de enfrentar, no seu longo percurso de vida,  todo tipo de intempéries, porém de caráter do próprio ego.


[1] Fhilippe Perrenoud, 10 Novas Competências para Ensinar. ArtMed, Porto Alegre, 2000, p. 60-61



[2] Sara PAÍN. Subjetividade e Objetividade, Relação entre Desejo e Conhecimento. Editora Vozes,Petrópolis, RJ, 2009

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Reflexão sobre o livro "A parte que falta" de Shel Silverstain


Reflexão sobre o livro “A parte que falta” de Shel Silverstain




Refletir sobre a leitura de uma escrita é uma prática aparentemente muito simples para os devoradores de bons livros. Porém, interpretar o conteúdo textual é uma questão, sobretudo, literária e estilística. Mas o que poderíamos denominar de ler uma pintura, um desenho abstrato,  um rabisco gráfico ou uma planta arquitetônica? É sabido que em cada livro esconde-se uma história a ser apresentada para o leitor. Até aí,  tudo nos parece ocupar um lugar comum. Entretanto, para os mais ilustrados e de aguçados olhares, surge algo que salta das entrelinhas do texto como um objeto de arte, ocupando o lugar da palavra (e por querer falar) por outras vias, vai além de linhas imaginárias ao revelar sentidos ocultos no dizer. Para tanto, não basta olhar. Há que refletir sobre a obra enquanto arte. Há que se ir ao encalço dos muitos rastros demarcados pelo pensamento do autor em cada obra – para lá, no interior da historia, levantar as cortinas que embaçam a visão do leitor – e, então, penetrar no indizível. Eis a leitura  das entrelinhas: um intrincado arcabouço  de interpretação de leitura acompanhada de traços que falam de pensamentos ocultos.

 É desse modo que me debruço sobre o livro “A parte que falta” do autor Shel Silverstain. Um livro infantil composto de textos e desenhos com pinceladas de grandes metáforas. O traçado do desenho apresenta-se através de um personagem como um grande “O”, onde a história tem início.  O clímax da narrativa atinge seu momento crítico: encontrar a parte que falta. Para dominar a cena dessa jornada à procura da parte que falta – o grande “O” segue rolando seu caminho sem cessar, á procura da parte que falta – e encontra várias partes mas com tamanhos diferentes ao de sua fenda até que, não por acaso, ele encontra uma parte que dá o encaixe perfeito e ele estabelece um diálogo com a parte:

“Achei a parte que falta em mim”,
ele cantou.
“Achei a parte que faltava em mim,
asse o pudim, faça o quindim,
achei a parte...”

“Espere aí”, disse a parte.
“Antes que você asse o pudim
E faça o quindim...

Não sou a parte que te falta.
Não sou parte de ninguém.
Sou parte completa.
E ainda que eu fosse
A parte que falta em alguém,
Não acho que seria a sua!”



 E o diálogo do grande O manifesta sua decepção e continua rolando em busca da parte que lhe falta. Talvez, pudéssemos afirmar que em cada um de nós existe essa falta concreta que achamos ser (ausência) de uma outra parte (fora de nosso corpo) o que nos faz sentir tão incompletos. Ainda, poderíamos recorrer a problemas emocionais e amorosos e atribuir uma falta abstrata como causa de nossas frustrações. O autor Shel Silverstain aborda através de uma linguagem simples o cotidiano emocional da existência humana, relatando por meio do conto infantil as perspectivas desse novo olhar  a realidade ao nos depararmos com as várias faces de um todo imaginário. A linguagem desenvolvida pelo desenho gráfico impõe a cena do diálogo – e esse diálogo, ultrapassa o imaginário infantil para ceder lugar ao drama existencial –  um recurso semântico onde a metáfora cumpre sua função intencional.

 Entretanto, cai sobre mim uma reflexão em “A parte que Falta”: que tipo de leitor Silverstain quis alcançar?  Terá sido apenas o público infantil? O autor ousou despertar o imaginário da criança mas acertou o alvo pela metonímia da “falta” – uma fatia do recorte temático, pode oferecer lugar para uma leitura da vida – que se passa no cenário interior das emoções como constatação do sintoma que se inscreve no outro.

 Desse modo, fica um alerta aos professores: permitir que haja em cada criança o seu infans  que ainda não se manifestou. O desenho alcança a linguagem do olhar da criança e isto basta como proposta de leitura. A fenda triangular posta no desenho do grande “O” pode ser entendida como uma boquinha entreaberta que a leitura infantil dará como resposta. Pois bem, literariamente, também há poesia nesse olhar do infans, a ideia de uma cara que rola em busca de uma parte que falta pode sugerir outras possibilidades, desde que haja o incentivo para o alargamento da discussão entre o professor e a sua turminha.


Ao concluir esta breve reflexão sobre o livro "A parte que falta" gostaria de enfatizar a felicidade do autor nessa grande temática: o diálogo é quase um jogo pela busca, busca da vida e de ser feliz, de encontrar a outra parte que falta naquilo que nos completaria como seres carentes; aquilo que nos complementa em nossas ações psicológicas e físicas. Uma busca necessária – diária, pois quase sempre em cada ser humano há essa espécie de “fenda” – essa parte da emoção que foge a razão e que por isso mesmo nos deixa um vazio constante: uma busca pela parte que falta a ser  preenchida.

Portanto, rolar rumo ao futuro e ir em busca da parte que nos falta, eis o grande jogo. Como definir a magnitude desse conflito andrógino numa abordagem, aparentemente,  tão inocente?  O autor Shel Silverstain com poucas palavras mapeou o que se esconde no interior do humano e o segredo de não ser “completo” – continuar “rolando” é a proposta de vida na busca pela falta para sermos felizes.

A quem se se destina o livro “A parte que falta”?