terça-feira, 27 de novembro de 2012

A Hierarquia das Lembranças e a Fisiologia do Ser Humano na Arqueologia do Tempo

Fisiologia das lembranças
Lembrar! O que é que nos faz recordar? Em que lugar da memória estarão preservadas as lembranças de toda uma história de vida? Talvez tenhamos de responder essas perguntas com uma outra: será que nosso corpo, ao longo de nossa existência, abrigaria fisiologicamente toda espécie de recordações boas e más sem adoecer? Como o inconsciente daria conta de “administrar” conscientemente tais emoções? E, ainda,  será que seria saudável ter na lembrança os arquivos preservados de fatos vividos em uma época e que, para buscar um desse fatos, teríamos de acionar uma chave com o pressuposto poder de alavancar hierarquicamente todo um percurso de vivências e de lá resgatar imagens fossilizadas, as quais viriam à tona indiscriminadamente nos fazendo  lembrar tudo aquilo que tenha ficado marcado em nossas memórias, seja a coisa boa ou ruim.

 Portanto, lembrar é também ter de conviver com o arquivo das “coisas” que marcaram a memória de nossa existência: seja isso uma resposta a um grande desejo que tenha sido impulsionado para um imprinting ou ainda, uma via para uma “falsa memória”. Segundo Sternberg (2000), a memória é conceituada como “o meio pelo qual você recorre às suas experiências passadas a fim de usar essas informações no presente; refere-se a um processo de mecanismos dinâmicos associados à retenção e recuperação da informação” (p. 204). Cabe aqui rever um relato de Goethe sobre uma recordação da infância (Dichtung und wahrheit):“Se tentarmos recordar-nos do que nos aconteceu nos primeiros anos da infância, muitas vezes confundiremos aquilo que ouvimos de outros, com o que realmente nos pertence e que provém daquilo que nós próprios testemunhamos.” (In FREUD, 1917 -1918).

A memória está associada a um processo de mecanismos dinâmicos, diretamente ligados à função do armazenamento, tanto no que se refere à retenção de memórias quanto à recuperação de informações sobre experiências passadas. Dentro desse modelo de memória tradicional incluem-se os sistemas sensoriais de armazenamento de curto prazo e de longo prazo. De acordo com a psicanálise em sua primeira fase – a da catarse de Breuer – ela consistia em focalizar diretamente o momento em que o sintoma se formava; uma busca persistente por reproduzir os processos mentais envolvidos nessa situação, (um esforço) repetitivo, a fim de dirigir-lhes a descarga ao longo do caminho da atividade consciente. Daí, recordar, portanto, é ab-reagir com auxílio, mecanismo utilizado naquela época.  Tempos depois, surgiu a hipnose que logo foi abandonada, cedendo lugar à tarefa de descobrir a partir das associações livres do paciente, transformando-se no ato de redescobrir, o que ele (o paciente) se permitiria recordar.

A memória é uma das funções cognitivas mais complexas que a natureza produziu, e as evidências científicas sugerem que o aprendizado de novas informações e os seus respectivos processos de armazenamento causam alterações estruturais no sistema nervoso. Na memória está depositada toda a capacidade de reter, recuperar, armazenar e evocar informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória humana), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial). Desse modo, a  memória humana focaliza coisas específicas, requer grande quantidade de energia mental e deteriora-se lamentavelmente, com a idade. Por isso mesmo, cientistas e estudiosos da neurociência recomendam  o exercitar da memória cotidianamente.

 A memória nos conecta a conhecimentos que geraram novas idéias, auxiliando‑nos a refletir sobre a tomada de decisões em nossa vida diária. A memória, segundo diversos estudiosos, é a sede do saber, do conhecimento e das histórias vividas de todo o ser humano. Desse modo, a memória deve ser trabalhada e estimulada em sua amplitude. Pois é através dela que damos significado ao nosso cotidiano e é através dela que acumulamos experiências para utilizar durante toda a vida.

Assim sendo, a memória tem para além da função de promover a adaptação do ser humano ao meio, contribuir de modo efetivo para a socialização e sobrevivência do indivíduo, exercendo uma complexidade diante das variáveis das linguagens: sentimentos, emoções, prazeres, dores e os estados sensoriais com seu sons e odores além dos estados de ânimos.

E o que é lembrar?

A lembrança é um fato real de uma evocação do passado. Mas também é a capacidade que o ser humano tem para reter e guardar os fatos e episódios interessantes ou não de um tempo vivido ou idealizado. A maior de todas as funções da memória é a possibilidade de projeção em relação ao futuro. Portanto, sem memória não se tem esperanças; sem memória não há futuro nem presente, pois não há identidade. Lembrar é ter certeza desse EU que se faz representar por tantos outros eus. A identidade sustentada por esse ''Eu" conduz o indivíduo a reviver lembranças que são projetadas e, que, vão ao longo do tempo, ser representadas pela consciência, tanto pela consciência superficial quanto profunda daquilo somos, pois, quando pensamos, aferimos lembranças: qualificando-as e quantificando-as em função do passado e em relação às projeções para o futuro. De certa forma, somos sempre o que passou e o que ainda pensamos vir a ser.

A compreensão da capacidade e da evidência neural, em relação aos estudos da memória, tem atingido um grande crescimento em virtude dos avanços tecnológicos em técnicas de neuroimagem funcional. Tais avanços constatam durante processos observáveis  os indicadores do desenvolvimento biológico para o desempenho de tarefas cognitivas. Eles são passíveis de observação direta e da quantificação, além de apresentarem a vantagem de uma representação gráfica de forte apelo. Desse modo, graças às tecnologias avançadas nas áreas do Sistema Nervoso Central (SNC), tais estudos e identificação são os correlatos neurais dos processos cognitivos engajados quando da realização de tarefas de conhecimento, por exemplo: codificação, armazenamento e recuperação de informação na memória.

O grande poder da memória assusta e já dizia Santo Agostinho. “Tenho medo da graça que passa sem que eu perceba!” E acredito que também temos medo de esquecer o que de mau vivemos, mas igualmente temos medo de não lembrar a felicidade vivida.

                Desse modo, somos essa misteriosa mistura de passado, presente e futuro. E ainda que lembrar nos faça doer, este é o melhor sinal.

Santo Agostinho. Confissões, Edição bilíngüe, 2ª Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2004, Lisboa.
FREUD, Sigmund. Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana. Imago, RJ, 1987.