segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A arteterapia nos processos depressivos


A arte é a fada que transmuta e transfigura o mau destino.


(Manuel Bandeira)

 
Por: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital


Depressão e falta de ânimo

 
Depressão e falta de ânimo são palavras sintomáticas e são respostas de ações vividas sobre as pressões expostas pelo cotidiano. Diante de tais estados, somos obrigados a definir o que realmente é importante em nossa vida. Que significado estamos buscando para nossa existência – devemos lutar contra o desânimo? – se não quisermos continuar sofrendo. A resposta para tais atitudes deverá partir de uma decisão importante: a sua própria. Se queremos viver deprimidos e estressados ou eleger uma outra forma de olhar a vida. Inicialmente, o estado depressivo funciona como um sinal de alerta, de que algo está acontecendo de errado e que precisamos mudar a forma de agir e de pensar. Portanto, acredita-se que alimentar o ânimo de viver com atividades variadas, buscar motivos que assegurem maior importância ao bem-estar físico e emocional, seria um indicativo para que possamos atingir aquilo que pensamos ser qualidade de vida. A arteterapia, entre tantas outras práticas clínicas, oferece um eficaz instrumento de ajuda que auxilia os mecanismos humanos a evitar consequências psíquicas e físicas, assim como os sérios riscos que poderiam afetar nossa saúde psíquica.

 
Classificação hipotética dos vários estados da depressão

No quadro de Van Gogh, a depressão se apresenta reproduzida com tintas, cores e gestos e, nos gestos, um traço de total solidão. A Depressão que tem sido íntima de artistas e poetas, desde tempos imemoriais, somente começou a receber a devida importância pela medicina a partir das últimas décadas. Nos anos de 1950 a 1960, a doença foi dividida em dois tipos: endógeno e neurótico. Endógena significa que a depressão vem de dentro do corpo, talvez de origem genética ou pode surgir do nada. A neurótica ou reativa tem um fator ambiental de precipitação como a morte de um dos cônjuges ou a perda de alguma coisa significativa: um bichinho de estimação, emprego, amizades e daí por diante. Nos anos de 1970 a 1980, o foco de atenção passou da causa da depressão aos seus efeitos sobre as pessoas atingidas. Isso quer dizer que qualquer que fosse a causa de um caso particular, os sintomas e as funções prejudicadas passariam a ser tratados por especialistas que se propusessem a concordar e diagnosticar como sendo um transtorno depressivo. O DSM-IV exemplifica as várias causas da depressão e afirma ser necessário o acompanhamento médico, assegurando não se tratar de uma sintomatologia banal, embora ainda hoje existam alguns argumentos distintos como em todos os ramos da medicina. Tendo sido vítima de uma antiga visão dicotômica e parcial sobre o ser humano, em que as doenças físicas eram separadas das alterações emocionais, os transtornos depressivos permaneceram, por muitos anos, à margem dos avanços neurocientíficos. Bem mais tarde e, gradativamente, esta visão foi sendo modificada e ampliada. Esse reconhecimento ganhou um novo olhar sobre a depressão. A partir daí, aderiu-se a um novo conceito no qual passou-se a reconhecer a mente e o corpo não mais como entidades separadas, mas, sim, como componentes de um ser humano que deve ser contemplado em toda a sua complexidade. Desse modo, os sintomas somáticos (corporais) são considerados como frequentes em até 94% dos pacientes deprimidos, podendo afetar todos os sistemas do corpo, gerando alterações e disfunções gastrintestinais, cardiológicas, dermatológicas, sexuais e até as mais complexas como as neuroendocrinológicas, vistas, hoje, como comuns. O estado depressivo passou a ser definido por uma alteração persistente do humor, diminuição do prazer nas atividades cotidianas, alterações de sono e apetite e outras alterações, tais como fatigabilidade aumentada, delineando-se em um perfil multifacetado:  sensação de vazio, de tristeza, de desânimo e de falta de sentidos na vida, um conjunto de elementos negativos irão contribuir para a baixa da autoestima do indivíduo e irão afetar, diretamente, o sistema imunológico.

 Por isso mesmo, é muito importante buscar auxílio, tratamento terapêutico ou psiquiátrico, o quanto antes para evitar o prolongamento da doença. O acolhimento familiar também é muito significativo, pois favorece a melhora psíquica. Além do stress emocional, há o stress físico que pode comprometer o indivíduo em quadros de pressão alta; favorecendo ao corpo manter-se num verdadeiro estado de contraturas musculares, o que, sem dúvida, poderia contribuir para um enfarte do miocárdio ou, até mesmo, levar o indivíduo ao suicídio.
 
E se não tivesse o amor?
E se não tivesse essa dor?
E se não tivesse o sofrer?
E se não tivesse o chorar?
(Caetano Veloso, It’s a long way)

 

Buscando ajuda à recuperação  

 
A melhor forma de tratar a depressão seria, em primeiro lugar, buscar ajuda psiquiátrica. E a partir daí, buscar um suporte psicoterapêutico. A arteterapia é sem dúvida, um grande aliado de cura. Não há uma receita mágica que livre o indivíduo de tais desajustes de uma hora para outra. A depressão é um transtorno que passa pela mudança de humor no qual uma pessoa tem pensamentos de extrema tristeza, desesperança, chegando, às vezes, ao desespero, e esses sentimentos costumam interferir na vida diária, como trabalhar, comer ou dormir. Portanto, cuidar em buscar alegrias verdadeiras, juntamente com uma ocupação saudável são algumas indicações que amenizam e podem oferecer caminhos para futuras soluções. Ainda assim, não se garante que se possa estar livre de qualquer sintoma derivado de um stress, porém o que se sabe é que esse agente tão agressor vem afetando grande parte da população contemporânea, causando vários transtornos sociais, assumindo uma espécie de mal do século pela forma como as pessoas são atingidas em sua dinâmica de vida. Leandro A. T. Tavares, autor de A Depressão como “Mal-Estar” Contemporâneo, fez jus à temática que deu origem ao nome de seu livro, vale consultá-lo.

Aliados de prevenção


Acredito no bom senso, no otimismo, no controle das emoções e na capacidade para refletir sobre as adversidades. Em outras palavras, a prevenção envolve, em primeiro lugar, a autoestima e, logo em seguida, uma predisposição para querer fazer algo; algo que sirva como estímulo, algo que acelere os processos de resiliência. De acordo com esse critério, a autoestima induz ao saber viver com resiliência, sobretudo, buscando nutrir o sentido de esperança e acreditar em dias melhores. Vamos explicar uma a uma.


A AUTOESTIMA é uma experiência íntima na qual o próprio indivíduo se vê envolvido ou pela falta ou pelo excesso. É o que ele sente a respeito e no entorno de si mesmo. Exemplificando: é um sentimento que nem todos estarão aptos a vivenciar face às atribuladas exigências cotidianas. A autoestima tem uma ligação direta com o sistema imunológico e com a consciência. Desse modo, a autoestima precisa ser estimulada para produzir a autoconfiança e, por assim dizer, levar o sujeito a confiar nas próprias idéias (autoeficiência),  acreditar mais e saber-se merecedor da felicidade com (auto respeito).

 
RESILIÊNCIA
significa ser flexível, se autoajudar para voltar ao estado natural o mais rápido possível, buscando algo que possa fazê-lo levantar, sair da inércia, sacudir a poeira e dar a volta por cima (
Paulo Vanzolini). Resiliente é aquele que consegue reconhecer a dor, encontrar um sentido e suportá-la até que seja possível resolver o problema de uma forma positiva. Ser resiliente é buscar o reequilíbrio, enfrentando as circunstâncias com sabedoria e consciência de seu estado. Assim entendido, pode-se considerar que a resiliência é uma combinação de fatores que propiciam ao ser humano condições para esse enfrentamento em busca da superação dos problemas e das adversidades. Há ainda uma outra palavra a ser analisada em seu contexto, trata-se do estímulo que demanda à Esperança e que sem esse  precioso aliado, torna-se mais difícil sair do quadro depressivo, onde a doença impera.


 A ESPERANÇA também nos sugere ajuda, ou seja, alguma ação que nos remeta para a ajuda. O professor e psicólogo C.R. Snyder (1994) nos apresenta uma nova abordagem para o conceito de esperança. O autor referido fala que a esperança seria uma forma para se encontrar novos caminhos, seria um novo rumo frente aos objetivos desejados. Desse modo, podemos dizer que a maior contribuição da Teoria da Esperança de Snyder é salientar o aspecto cognitivo,  ou seja, o foco no processo de crenças e pensamentos envolvidos na esperança. O aspecto emocional será contemplado paralelamente e a esperança contribuirá naturalmente para o fluxo das emoções positivas, de bem estar e de felicidade. Afirmo que, em qualquer situação, onde haja a desesperança, há que se rever as nossas vontades de buscar meios para que se possam atingir resultados positivos: onde há vontade há meios! O autor citado nos diz que temos de investir na esperança para que possamos encontrar caminhos alternativos na eventualidade de obstáculos.

 
De que forma a Arteterapia pode ir ao encontro dessas necessidades

 
Como funciona a arteterapia e o que o arterapeuta pode oferecer? A arteterapia se destina a qualquer pessoa, independente do estado e do sintoma apresentado, quer seja físico ou psíquico. A arte é o instrumento de facilitação e libertação de expressões. Seus mecanismos simbólicos oferecem o ajuste das emoções psíquicas. Os instrumentos utilizados na prática do setting da oficina, apresentam variados tipos de materiais: papel, lápis de cor, colagem, cacoterapia, argila, batik, pintura em tecido, técnicas de cobertura em madeiras, confecção de peças de adorno para recriar representações visuais de pensamentos e sentimentos. A Arteterapia pode ser usada como atividade individual ou grupal. Os critérios arteterapêuticos usados através desses processos criativos  simbólicos promovem ações facilitadoras para o equilíbrio emocional.

 
Importante: a arteterapia não busca fazer um artista; não requer nehuma habilidade artística; a arteterapia não impõe nem induz nenhuma atividade técnica; ela apenas utiliza-se dos materiais da arte para facilitar e transformar o sujeito em seus bloqueios. A Arteterapia com seus mecanismos expressivos explora as emoções e os pensamentos profundos, procurando resgatá-los e libertá-los do abismo dos padrões negativos recorrentes. Esses intensos sentimentos, às vezes,  se tornam imensamente dolorosos, impedindo que o indivíduo avance em seus projetos de vida. O arteterapeuta oferece efetiva orientação, apoio e oportunidade.
 

Bem, de qualquer modo, sempre que houver um problema em nossa vida, teremos de agir, de tomar decisões adequadas e conscientes, pois, ainda que estejamos frágeis,  é mais que um dever tornar nossa vida significativa e compensadora. Desse modo, para que possamos realizar esses eventos, principalmente, quando estivermos nos sentindo desmotivados, será muito necessário buscar ajuda de terapeutas e acreditar que sempre haverá uma luz no final do túnel. Pense nisso!

 

Fonte:

Pesquisa: 16/12/13 às 17h.




 

A.Beck & Brad A. Aford. Depressão Causas e Tratamento. 2ª Edição, Editora Artmed, 2011

Tavares, Leandro A, Todesqui. A Depressão como “Mal-Estar” Contemporâneo. Editora UNESP

DSM – IV – TR. MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS. Editora Artmed, 4ª edição. Porto Alegre, 2002.

 


 

 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Mitos e Ritos: Uma jornada feminina

 

PRIMEIRO CONGRESSO DE MULHERES DA CIDADE IMPERIAL


           

 

Palestra proferida no Palácio de Cristal -  Petrópolis em : 07/03/2004

 Autora: Vannda Santana

 E-mail: vannadsantana@hotmail.com

          


Toda mulher passa por uma jornada de ritos e mitos como personagem arquetípica, desafiando a ritualística na condição de filha, mãe, amiga, namorada, parceira ou amante ... Durante esses estágios pelos quais a mulher terá de passar, a vida lhe reservará múltiplas escaladas sem que tenha tempo para pensar. O nascimento de uma mulher é marcado por uma ironia do destino: junto com ela, encravada em sua predestinação, há uma caixinha de segredos que nada lhe revelam ou prometem, somente o tempo um dia poderá dizer. O que se pode afirmar no presente, no aqui e agora, aponta para o futuro; portanto é seguir em frente, seguir a trilha do longo caminhar, onde tudo é uma aventura renhida de fôlego que se soma no corpo ao lado de todo processo fisiológico: vaidades exacerbadas para umas e, para outras, o desmazelo, além de enxaquecas e TPMs. Algumas se veem como sendo a vida castigo, enquanto outras tiram a sorte grande de com tudo não se incomodar.

 

 Mas certo mesmo, toda mulher já sabe: terá no corpo uma marca que a acompanhará nesse percurso de existência humana e feminina desde a sua prematura idade (da adolescência), culminando com as irreversíveis mudanças da terceira idade; desde o viço da beleza, aos primeiros sinais da degenerescência.  Nada escapa ao tatuar do tempo e nem a faz desviar do que terá de enfrentar. Este é um longo percurso a que toda mulher terá de se predispor, sempre com uma carga a mais de prévia aprendizagem. Nada se retira ou se acrescenta da sua condição de aceitação. E, assim, uma vez sendo mulher, o caminho já está traçado. Aliás, isto é só mais um ato iniciático. Para início de conversa, o corpo é sábio e nele funciona um laboratório fantástico que se predestina por uma condição singular que acontece durante toda a existência da vida e com direitos a testes, prova de resistência, a de ser mãe, ensaios entre a submissão de ser mulher e amante, muito além da altivez de ser a provedora do lar. Mas em tudo isto há um sábio enfrentar a fim de vencer os próprios limites.

 

Esta  é a vida de qualquer mulher. Isto é o que lhe reserva o destino: num dado momento compartilhar aventuras e em outros instantes vivenciar os mais delirantes desejos. Mas em tudo há um traço pertinente marcando a trajetória da história feminina; seja pelas vitórias e realizações, ou pelas decepções e frustrações amorosas. O que se pode perceber, num caso ou no outro, registra-se no corpo como marca de existência humana capaz de driblar a má sorte e, com sorte, se o amor lhe bafejar, nada será obstáculo à condição de ser mulher.

 

Mas seja qual for a atribuição da mulher durante a sua existência será muito mais que mitos em seus rituais e, pouco a pouco marcará sua trajetória, ainda que inconscientemente. Basta haver uma necessidade, uma situação ameaçadora, um filho em perigo, para que reapareça e ressurja do nada uma força incrível, sem que se possa medir, tamanha será a reação de proteção. Podemos destacar essa força feminina e de igual potência, àquela existente nas fêmeas dos animais. E, desse modo, estarão sempre prontas para enfrentar o presente, adequando-se para o próximo instante até mesmo diante do imprevisível. E quando essas criaturas tem de entrar em cena, mesmo sem ter antes ensaiado seu script, não hesitarão em fazer do chão o seu palco e nem se abalarão por ter de passar pela corda bamba do picadeiro. Nesse momento são elas as ( mulheres) que se vestirão do arquétipo mais poderoso para dar conta de um espetáculo chamado vida: abrem-se as cortinas do agora  e desce o pano de fundo do enredo entre o sagrado e o profano; celebram cenas de alegria ou de tristeza, mas não calam as dobras do destino; vencem as bordas do tempo no fazer com arte a vida e, assim, como estrelas do amanhã, brilharão hoje, exaltando a existência humana, procurando equilibrarem-se na aventura da razão ou da des-razão.

 

 Vimos um pouco sobre os mitos personificados nas mulheres e vimos também aqueles mitos que nem sempre gostam de se fazer presentes. Mas aqui, através desta escrita, alguns desses mitos manifestam-se com suas estruturas dentro da escrita ou até por meio da imagem. Os Mitos são assim: estruturas singulares que vão designar certos tipos de comportamentos, além de caracterizar com sua presença marcante a fala e a atitude de um determinado povo, de qualquer lugar ou etnia. Entretanto, os símbolos associados aos mitos podem realçar sua presença através dos costumes, das crenças populares, ao mesmo tempo em que se mostram pelas características de rituais e de identidade os quais se manifestam em cada grupo.

 

 A imagem, tal como a escrita literária, também se veste de mitos e ritos, de símbolos e de magia uma vez inscritos. Podemos perceber suas ações através das lendas, fábulas, folclore ou ainda presentes nas literaturas clássica ou popular. Esses seres míticos podem surgir vivos nas  letras, nas canções, nas danças, nos oferecendo belas peripécias de linguagens e gestuais que se apresentam decodificadas em obras de artes bem como na poesia, nos romances, contos e crônicas, assim como nos contos de fadas. Dentro desse conjunto de obras artísticas, históricas e lendárias, encontram-se aquelas que não podem faltar e que são de conhecimento universal, por exemplo:  Bíblia  Sagrada, Cabala, Torah, Alcorão etc. Desse modo, constatamos que a mulher semelhante à literatura é o grande templo onde  residem todos os mistérios.

 

As mulheres se mostram como seres quase que absolutos diante de uma força interior, à qual não se pode medir, dela se vestem e são por ela incorporadas, deixando-a reinar em seus corpos com suas múltiplas  ações. As mulheres são assim: especiais. Parecem manter um pacto com os deuses brincalhões: ora são elas ninfas, ora são elas as fadas das histórias infantis. Em outros momentos, viram bruxas más também. Entretanto acredito, por ser também mulher, que todos deveriam aprender um pouco mais com essas “deidades”  o exercício de  suas   polaridades e de suas tamanhas ambivalências. Elas sabem de coisas das quais muitos ainda não apreenderam e, elas sabem muito mais: sabem doar afetos quase impossíveis e, sobretudo, todos os dias, sabem uma nova e rica lição de amor.

 

 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A ARTE DE ESCREVER À MÃO


 


(uma técnica quase em extinção)

 

Por: Vannda Santana  

 


 


                   Reviver a escrita a mão é processar a palavra no seu contexto teórico: Caligrafia vem do grego “calli” e significa “belo”, grafia “escrita”. Assim, a letra pode até não ser bela, mas seu registro impresso no papel guarda uma “imagem”, um sinal gráfico que significa uma marca, um registro individual, no qual se imprime a identidade individual. Poderíamos até dizer que, para além do grafismo, há um simbolismo. A letra marca esse registro no escrito, deixa “rastros” de legitimidade, imprime um caráter, mostra sua marca de identificação, sinaliza seu traço único e, assim,  denuncia quem o fez.  Portanto, a letra é muito mais que uma marca individual; através dela e do traço que simboliza sua forma pode-se definir o dono da escrita, pode-se deduzir uma estrutura bem próxima de uma identidade pessoal. Dentro desse critério, podemos conceituar a grafologia como ciência; um estudo analítico da personalidade, feito através da escrita. Trata-se de um estudo de conhecimento científico grafológico, o qual tem como referência suas características essenciais, que afirma ser capaz  de dar conta da verificação e da análise da personalidade da escrita do indivíduo. Não é aqui o caso específico.

 

A palavra Escrever origina-se do grego “gráfein” e em latim “scribere”, significando a origem da ação da escrita grafada. Aqui neste artigo, a intenção é relembrar os tempos remotos, tempos da escrita feita à mão, um processo já quase que em extinção. Poucas são as pessoas que ainda se utilizam da escrita à mão. Por isso mesmo, tento voltar no tempo, ir até lá, -  onde a memória havia se rendido lentamente aos velhos hábitos – e saltar do passado ao presente, numa espécie de ponte que vai do recuar do tempo à adequação de novas tecnologias, num exercício vigoroso de reconhecimento do novo mas sem abandonar, totalmente, velhas práticas da escrita feita à mão. A chegada desses novos hábitos mudaram, radicalmente, o rumo e a troca da comunicação; os computadores facilitaram os meios de informação, tais como os e-mail que chegaram para derrubar fronteiras e ainda falam em tempo real, onde quer que a notícia aconteça. Portanto sem fronteiras, não há mais distância entre os cidadãos de qualquer lugar do mundo. Daí, o ato de escrever à mão ter caído em desuso.
 
  Assim sendo e sem lançar mão de conceitos científicos, torna-se visivelmente fácil diferenciar a letra de uma pessoa que esteja centrada, calma, envolvida com o fazer de seu escrito, daquela outra que, sem concentração e sem capricho, deixa seus rabiscos tortuosos falar por ela mesma.
 
 Eis, então, a pergunta: uma simples observação sobre a letra seria capaz de revelar o que se passa no interior do indivíduo?  Posso até dizer que sim. Porém, não fiz nenhum estudo sobre grafologia e não seria o caso aqui em questão. O que se pretende com este texto é nada mais nada menos que oferecer ao leitor uma visão desmitificadora da escrita à mão. Depois do evento do computador, com os recursos da tecnologia da Informática, percebeu-se que a escrita a mão ficou em segundo plano e, às vezes, em total desuso. Desse modo, afirma-se que através  da grafia (guardando algumas observações) chega-se ao caráter psicológico do indivíduo, pelo tipo da letra-escrita a mão. Todo professor deve conhecer bem o tipo de letra de seus alunos; podendo garantir a diferença visual dos que são mais cuidadosos, daqueles que não o são.
 
Se o cérebro determina o que a mão deve escrever, acredito que a mão também se torne cúmplice por emprestar ao papel o grafismo impresso na folha branca. Assim, como um fio de energia criativa, a escrita escapa do pensamento pela mão e logo escorre pela ponta da caneta, em forma de tinta ou de grafite, isto é,  uma energia que se desloca das idéias, passando pela mão até chegar ao papel.
 
 De certa forma, a escrita cumpre seu ritual, plasma-se num desenho gráfico em forma de letras: letra torta, redonda, gorda,  comprida, esquisita, letra feia, a letra dos  disléxicos como classificam alguns teóricos; letra bordada, rabiscada, embolada, indecifrável, grande, pequena, subindo morro ou despencando ladeira abaixo. Não importa a ordem em que essa estrutura esteja manifesta no corpo da letra, nem a forma em que os rabiscos grafados apareçam arquitetados por gestos ou carregados de intenção. Para o nosso caso aqui, leitor, nada importa mais que a sua leitura.
 
Por outro lado, queremos chamar à atenção para os atos de criação: uma letra pode estar a serviço de uma ideia e para que esta possa vir a se fixar e se plasmar no papel, há que se ter um veículo que a conduza ao seu destino. Então, constatamos ser a mão o elemento que favorece o caminho da escrita. Daí, que toda ideia intenta contar uma história e a escrita é o único veículo de cultura que, sabiamente, irá conduzir a linguagem a fim de ser ideiaescrita. Parece complicado. Descomplicando: haja vista as histórias de cada povo e de cada tempo de sua época. Entretanto, cada tempo e povo tem seus registros alicerçados, assim, tal como na película de um filme que conserva o enredo e a trama da cultura de um passado. Desse modo,  a história também se faz reveladora de um registro. Pode  dizer-se que os fósseis humanos foram vistos e interpretados pelos paleontólogos numa perspectiva condicionada pela sua época segundo André Leroi-Gourhan.[1] A história da existência humana analisada sobre esses aspectos remontam fatos para muito além da letra.
 
  A libertação da mão tem sua origem na história da fisiologia humana, das ações e do pensamento. Sabemos que a letra é individualizada, personificada e, por isso mesmo, ela é uma identidade física, uma manifestação de um certo fisiologismo psicológico e, talvez, fosse notório lembrar que os símbolos gráficos remontam, criteriosamente, às primeiras escritas nas pedras e nas paredes das cavernas. É de lá que resgatamos os registros que foram deixados  da espécie humana: o modo de ser e de viver de cada povo. Por isso, pode-se afirmar que pela estrutura da letra, do rabisco e das formas, talvez pudéssemos chegar a uma argumentação que nos levasse ao pictórico no terreno das pesquisas mais longínquas, através de uma análise de que a ideia de todo autor é, antes e também,  a inscrição de um tempo e da própria escrita. Essa  hipótese visa sustentar que toda ideia empresta à mão uma espécie de senha no momento da transcrição da escrita. Seria, talvez, um elo mágico? Ou seria esse algo (nascido das idéias) que, ao contaminar a escrita, por meio de uma semiologia, denotaria uma informação celular como  hierarquia de um núcleo familiar?
 
 É sabido que se perdeu o status da escrita à mão diante da evolução da tecnologia na era digital, da escrita eletrônica. Então, adotamos um status para a escrita - o de ser uma vilã na revolução do mundo informatizado, - onde as normas apontam para novos paradigmas no ato de “escrever”. O rigor tecnológico cristaliza sua exigência perante a velha estrutura, enquanto que as novas formas de representações vão se alterando  no eixo de identificação que se dá entre  o escriba e a existência do texto. Estamos falando de forma física como forma padrão, deixando claro que já não é mais permitido ao texto exibir sua grafia, sua letra como arte original de uma escritura feita à mão. Há casos,  regras e, também,  exceções.   
 
Portanto, o ato de escrever vai muito além de uma simples atividade  como artefato manual. Há em torno da escrita, uma certa magia, uma forma de como a mão vai imprimindo o desejo ideal a ser  desenhado pela letra na escrita. E o papel em branco? Ah! o papel..., este nada fala mas, aceita. O papel é o próprio silêncio fundante[2] sabe ser cúmplice daquilo que o pensamento dita para a mão. O papel tem sua discrição, nem questiona a eficácia intelectual de quem escreve. O papel é assim, só se importa com o registro que fica impresso em sua pele.
 
 
Amigo leitor, a arte de escrever é um privilégio e a mão é apenas uma aliada do processo de uma idéia.
 
 
 



[1] O Gesto e a Palavra – Técnica de Linguagem. André Lerói-Gourhan. Edições 70, Lisboa 1985.
[2] As Formas do Silêncio – No Movimento dos sentidos. Eni Puccinelli Orlandi. 6ª edição da Editora Unicamp, SP, 2007.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Reflexão sobre o cuidado!

Fenomenologia: uma breve reflexão sobre o Cuidado
 
 
 
 


“A ciência  não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele”.

(Merleau-Ponty, 2006)

 

Iniciar uma escrita ousando seguir os rastros da percepção de Merleau-Ponty é quase um ato desmedido. Não por vinculá-la a uma aventura sobre a ciência da fenomenologia da percepção, mas por ser um tema que se atrela à gêneses da filosofia e da psicologia, pressupostos necessários para que se possa reconhecer e compreender a seriedade filosófica que estará presente como essência da fenomenologia.

 

 Diante de tal ciência, o autor acima citado, assim, como Husserl,  nos conduz à atentar para uma reflexão sobre questões que, até hoje, estão longe de serem resolvidas.  Husserl já havia privilegiado a fenomenologia como caráter de “psicologia descritiva” e que esta poderia retornar “às coisas mesmas”, resultando em desaprovação da ciência. Enquanto que, para Merleau-Ponty, “O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade.”  

 

A fenomenologia de M. Ponty, ao afirmar sua crença na filosofia como seu único logos que preexiste, reafirma-se ser, ao mesmo tempo, o modo de como se pode perceber as coisas existentes no mundo. O autor ainda nos diz que “A verdadeira filosofia é reaprender a ver, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia.” Desse modo, podemos lançar mão de seu tratado para alcançarmos a reflexão sobre um olhar para o mundo e tudo que nele habita e, no caso específico deste artigo, queremos atrair à atenção do leitor, para uma reflexão sobre a palavra cuidado: o cuidar em primeiro lugar de quem se ama; depois, o cuidar com respeito aos nossos semelhantes e com responsabilidade das coisas existentes, como forma de garantir nossa própria existência.

 

 Então, se questiona: por que fenomenologia como uma reflexão sobre o cuidado? Eis a resposta: por acreditar na essência da fenomenologia como ciência e como um conceito que define - as essências: a essência da percepção e a essência da consciência. Este é o ponto central deste escrito –  perceber, sentir,  para melhor cuidar.

 

Desse modo, teremos de aguçar os nossos sentidos. Para que se possa sentir, se faz necessário perceber; perceber - exige uma condição para a qual se possam conduzir os vários sentimentos - os quais fazem parte de uma larga compreensão; enquanto que compreender - aciona o ato do saber para um estado de alerta - esta ação corresponde à ação que pode mudar qualquer realidade que se torne um fenômeno em nossa percepção.

 

Como funciona o fenômeno da percepção e o que em cada um de nós pode ser alterado por estes órgãos? Basta querer predispor-se a uma pequena observação dos fatos cotidianos para que se possa abstrair do objeto percebido aquilo que, na maioria das vezes, estaria visível aos nossos olhos. O canal da percepção deverá ser acionado, portanto, para analisar desde os pequenos gestos às mais belas atitudes.  Perceber uma obra de arte é poder ver com todos os sentidos. Perceber é um saber que dialoga com o mundo e se expressa com o que foi visto em seus vários sentidos. Portanto, perceber é acionar a nossa capacidade de ver o que vai além de um simples olhar.

 

A fenomenologia teve como um ideal de ciência o envolvimento de duas perspectivas fundamentais: primeiro, como uma tentativa de resgatar o ideal clássico de ciência que se havia perdido e que Husserl percebeu no final do século XIX; segundo, para restabelecer a filosofia como modelo de ciência rigorosa, a partir da investigação da consciência como núcleo da unidade do discurso científico e da unidade da existência. Historicamente, até o Renascimento, final do século XVI, conservava-se a tradição grega em relação à concepção de conhecimento, em que conhecer tinha a ver com uma comunidade entre o corpo e o mundo e essa comunidade só seria possível através dos sentidos[1]. O desvio operado por Merleau-Ponty na doutrina de Husserl viria mais tarde a confluir para os domínios de uma nova ontologia, como uma proposta tacitamente presente no ideário do pensador. Perante uma filosofia da consciência impõe-se o advento de uma filosofia do corpo, visto por uma dimensão comum, aparentemente, esquecida pela tradição filosófica ocidental[2].

 

Enfim, vamos à palavra cuidado, para o que, no momento, nos interessa como a fenomenologia. Numa visão menos especulativa, cuidar é uma palavra que se apresenta como experiência cientifica e filosófica, formando assim, um novo conceito diante do cotidiano e ao lado daquilo que vivenciamos como prática.  Assim, poderíamos dizer que existem várias formas de pensar e analisar os modos de cuidar, além de nos proporcionar uma outra visão ampliada na forma de amar com cuidado. Cuidar, então, no sentido científico-e-prático, acessa o modo como os cuidadores profissionais fazem do ato de cuidar uma profissão. Diferentemente, estão os grupos familiares que agregam, em sua prática, a relação de toda uma vivência de experiências afetivas com ampla consciência. O cuidar, neste caso, tem a ver com a pessoa a que se ama e, por isso mesmo, tem uma outra dimensão: abrigar com cuidado, cuidar com um zelo específico, cuidar para prolongar afetos.

 

 Enfim, como se apresenta a nossa percepção? Talvez, tenhamos que refazer o modo de ver, ouvir e sentir, reavaliando o modo pela qual fomos educados. De acordo com essa reavaliação de nossa cultura, é imprescindível rever nossos conceitos e as novas maneiras de interferir na prática afetiva.

 

  A palavra cuidado guarda semanticamente um novo conceito que nos obriga a repensar o cuidado como objeto não mais de forma independente de nós mesmos, mas diretamente comprometida e envolvida no seu duplo apêndice de sentido semântico que, além de agregar um sêmen que há no entorno do cuidar, abriga em sua estrutura um outro cuidar que vai muito além de um simples ato que nos impele à ação. Desse modo, por mais que não tenhamos cuidado, somos cuidados. Nesse caso, o significado possui uma dimensão ontológica para além da filosófica, atrela-se à fisiologia como demanda M. Ponty em sua Fenomenologia da Percepção, reafirmando existir uma constituição fisiológica entranhada na percepção do ser humano.

 

Por isso, equivale dizer que cuidar é um modo-de-ser extremamente singular, com o qual todos nós estamos de alguma maneira envolvidos, quer seja aquele que cuida ou  quem é cuidado. Desse modo e,  sem o juízo da consciência que a palavra cuidado exprime, deixaríamos de ser um ser humano no sentido lato. Lembrem-se: “... As palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas os seres humanos acumulam infindáveis experiências, positivas e negativas.”

 

Filologia da Palavra Cuidado:

 

 

Cuidado deriva do latim “cura”, forma antiga do latim “coera” significado atribuído nas relações de amor, do desvelo, da preocupação com a pessoa amada.

 

à Outra variante de cuidado: “cogitare”- cogitatur”, corruptela de coydar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatur é o mesmo de cura. Portanto, cuidar é tratar muito bem a pessoa a que se ama.

 

à Cuidado, então, significa: uma constante inquietação com aqueles a quem amamos e uma certa preocupação permeada de responsabilidade, de solicitudes, de zelo e de atenção. Sobretudo, o cuidar é um gesto que nasce do amor e prevalece independente de quaisquer condições e status. O ato de cuidar com amor, inicia-se na formação da família, gerando vidas e, mais tarde, esses filhos, serão os futuros cuidadores de seus pais. Ao finalizar a vida, todos passarão por esse estágio.

 

 Atenção: você cuida bem da pessoa que você ama?  Pense que o amanhã sem essa essência primordial do amor com certeza não haverá futuro sem remorsos.

 


Fontes:

 

Husserl E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda; 1994.

 

Husserl E. Crisis de las ciencias europeas y la fenomenología transcendental. México: Folios; 1984.

 
Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.



[1] Husserl E. Crisis de las ciencias europeas y la fenomenología transcendental. México: Folios; 1984.
 
[2] Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.
 
 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

GÊNESIS DA PALAVRA “PALAVRA”


Por: Vannda Santana

 

        
O vocábulo “palavra” apropria-se do sistema lingüístico, realiza-se através da contextualização de uma idéia, conta um conto, faz história, imprime uma cena. E quantos mistérios há acerca de uma só palavra e o que ela pode ocultar em seu contexto histórico-literário? Sabe-se que a palavra transgride, ao mesmo tempo que se ocupa da arte para se camuflar, quer seja numa  lenda referindo-se à moral da história, ou numa  cena onde a trama epistemológica será apenas valorizar a etimologia.
 

 Certos de que as Palavras são instrumentos de linguagem e que, de certo modo, estão sempre prontas a transmitir informações, busca-se então, através delas, o conhecimento. Mas é sabido também, que os critérios lingüísticos repassados à sociedade, possuem  uma diversidade de informação capaz de confundir qualquer  receptor menos avisado. Daí a importância de se conhecer o código da língua mater, o que ele deseja exteriorizar e qual o alvo de compreensão que se queira alcançar.

 
Portanto,  para que se compreenda a história que a palavra guarda em seu sentido Lato-Senso e em seu étimo, há que se rastrear desde à etimologia, ao simbolismo, em busca da gênesis e da formulação dos sentidos que se escondem por trás de cada palavra escrita.  E a PALAVRA,  termo que deu origem a este escrito, de onde vem?

 
  Longa é sua jornada. Há um logos como princípio supremo, portador de ritmo e de harmonia contido no léxico de cada letra de cada palavra que quer se comunicar. Por isso, os hebreus procuraram retratar a palavra de forma visual mostrando sua estrutura gráfica composta de letras  em (chamas). Portanto, a palavra BERESHÍT, que significa (No começo),  causa uma expressão de admiração por sua forma original em hebraico: – “Quantas chamas numa única palavra!  (...) As chamas são silenciosas. Elas CREPITAM, estalam, dançam, queimam, aquecem, iluminam. É o GRITO do Gênesis, é o FOGO da Sarça repetidos interminavelmente em cada letra, em cada palavra, em cada linha, em cada página, de começo a fim.”  Desse modo, afirma-se que os hebreus criaram um hieróglifo para grafar a  palavra – PALAVRA, conferindo a esta um importante sentido simbólico. Eles adotaram um valor de poder à Palavra de tal forma que, quando esta viesse a ser grafada, uma força recairia sobre a expressão, tal como um fogo alquímico: “fogo transformador”. Daí, a expressão deixar de ser lenda para ser Ação.

 
                              Assim são os atos e os fatos narrados no cotidiano da civilização humana. E para que servem as palavras se não para contar histórias e estórias e dar sentido à vida? As palavras são como cores e odores; são como o pão e vinho para alimentar o homem ao longo de sua história.  A palavra exorciza nossos fantasmas, ao mesmo tempo que socializa com seus elementos fantásticos. Incorpora personagens míticas e históricas, povoa nosso mundo onírico com imagens célebres, nos permitindo sonhar com mundos nunca antes vistos, sequer imaginados. “A PALAVRA É FOGO.





[1] Rômulo Cândido de Souza. Palavra Parábola. Uma aventura no mundo da linguagem. Ed. Santuário SP, 1990, p. 125
[2] Id., ibid., p.124

domingo, 2 de junho de 2013

O DIÁLOGO ENTRE AS ARTES E A LITERATURA

Uma fusão de limites entre palavra, texto e imagem

 

“Do passado caligráfico que me vejo obrigado a lhes supor, as palavras conservam sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las superpostas a si próprias; são palavras desenhando palavras (...).”
(Michel Foucault)

O diálogo entre os tempos


O diálogo entre as artes, analisado num período que vai do século XV ao século XX,  desenvolveu-se  num contexto em que a sociedade ocidental alimentava a ideia de separação entre os signos linguísticos e as artes plásticas. No decorrer do século XX, as relações  dialógicas entre as artes e a literatura estreitava-se de forma manifesta, adequando-se como parte da história com o passar do tempo. E, como todo acontecimento histórico que dá origem a uma movimentação artística, este contribuiu singularmente para que o evento pudesse acontecer na diluição dos limites entre as diferentes linguagens e, conseqüentemente, pela aproximação das diversas artes.
 Desse modo, ao estreitarem-se as fronteiras entre o texto e a imagem, abriu-se, então, um espaço para a aproximação das artes, partindo-se do princípio de que vários poetas, num dado momento, apropriando-se das artes visuais, inseriu-as nos seus escritos poéticos, estampando‑as na página. Tal procedimento denomina-se  atmaísmo.
Mas o que vem a ser Atmaísmo? Atmaísmo vem da união de duas palavras: Atman e Ismos. Para os hindus, “Atman” tem o sentido de alma individual originada do deus Brahan e que recebeu deste todo o poder de criação. “Ismos” é um sufixo de origem grega, que significa “capaz de captar e irradiar beleza”. Portanto, um trabalho atmaísta é aquele em que o artista inseriu um desenho ou uma pintura em sua poesia, ou vice-versa, unindo arte visual e  literatura como complementação do belo. Não se trata de colagem, o trabalho atmaísta é uma arte onde convivem duas criações artísticas ao mesmo tempo, ou seja, dois trabalhos de natureza distinta compartilhando do mesmo espaço.

 A partir daí, os escritores, mais precisamente os poetas, passaram a incorporar elementos gráficos e imagens em seus trabalhos. Por outro lado, os artistas visuais retomaram, então, a origem visual da escrita, utilizando-se do mesmo processo das artes para acrescentar elementos textuais em suas obras, por exemplo: os grafismos, letras e arabescos de diversos alfabetos tiveram seu papel na colagem de fragmentos de textos impressos, entre outros recursos que pudessem servir de acessório ao trabalho artístico. Naquele momento, tornavam‑se objetos de arte tais aplicativos, tanto para aplicação nas pinturas,  quanto nas poesias.
 A partir desse marco histórico, a palavra e a escrita passaram a compartilhar do mesmo espaço físico, agregando-se ora à imagem, ora à escrita, mas sempre em busca de um sentido que desse uma contextualização aos temas, com o fim de conceituá-las como objeto de arte. No caso específico, a imagem passou a se servir da escrita, mas o contrário também aconteceu de forma considerável, pois os elementos artísticos com seus temas atravessaram o tempo e traduziram-se do grafismo ao visual, privilegiando sentido à imagem no mesmo instante em que, juntos, puderam participar do sentido dialogal.

A reaproximação entre imagem e escrita que se deu a partir do século XIX pode contribuir no processo de resgate dos vínculos entre a palavra e a imagem. Essa contribuição representou grande importância nas experiências de determinadas épocas e de determinados artistas, tais como as do poeta francês Mallarmé, que passa a considerar a visualidade da letra e do branco do papel, como um elemento a mais em seus poemas. Assim como o trabalho pioneiro de Picasso e Braque, que com os papiers collés, inauguraram uma forte tendência da arte contemporânea, incorporando na obra artística materiais não artísticos. Portanto, letras e fragmentos retirados de jornais, partituras musicais, papéis de parede entre outros elementos gráficos, passaram a ser utilizados em obras artísticas de modo que as partes se ajustassem ao todo, tal como num quebra cabeça, criando e se ajustando de forma harmônica, para dar sentido a um outro visual artístico.
Imagens e linguagens com suas possíveis variáveis
Vimos que esses modos que se interpenetram nas linguagens, utilizando-se de imagem e de palavras parecem não cumprir uma ordem clássica. São manifestações que chegam a exprimir irrupções incontroladas, como diz Beneval de Oliveira em sua Arte e Dialética. No contexto da linguagem a palavra quer falar e deve falar; no contexto da pintura,  o artista impõe à arte o dever que ela tem de se revelar, atendendo à demanda do resultado artístico desejado.
Sabe-se que há casos em que a imagem se comporta como anunciadora de seu próprio discurso, onde o diálogo se faz presente de forma iconográfica. Exemplos podem ser exibidos  no caso das legendas, onde as quais emprestam sentido ao tema‑título  como objeto de arte, onde, às vezes, a letra é pura ilustração que se ocupa de um lugar no texto para chamar maior atenção que o próprio texto.
 E o texto é mais que arte expressa em seu contexto de arbitrariedade e subjetividade, pois o sentido do discurso está subliminarmente em ser uma legenda, com arte e linguagem.  Neste caso, pode haver uma metáfora no discurso, tomando para si o lugar de ser do ser da arte, declarado no processo visual de modo intencional. E pode acontecer com a pintura (imagem) o mesmo processo da escrita - palavras: a imagem retoma para si o lugar de um status de metonímia – onde a (obra de arte) fala por si só – uma declaração da qual não necessita exemplificação à significação.
Portanto, a palavra já nasce (pronta) para falar imbuída  de seu aparato lingüístico, de seu sentido semântico com seu discurso legível e não se difere da pintura, pois em ambos os casos, os signos são distintos e podem até comungar da mesma cena no mesmo espaço. O diálogo da pintura se destaca por apresentar um corte na experiência de quem a vê (a imagem), ela pode até ter palavras, mas a imagem não é palavra. A imagem,  em certos momentos, nos empresta a ideia de que gostaria de nascer palavra quando estava sendo germinada na consciência do pintor. Desse modo, o ato de imaginar pode subverter a razão e, qualquer outro adorno pode poluir a imagem. Entretanto, como negar qualquer subordinação entre imagem, palavra e texto?
A partir dos anos sessenta, os meios de comunicação aumentaram sua penetração e difusão, passando a intervir em todas as instâncias da vida cotidiana, fazendo com que o convívio com as imagens caminhasse rumo à saturação. Com este avanço, houve uma crescente banalização da imagem e até do próprio texto. E o mesmo aconteceu com as relações entre os indivíduos e os objetos, ou seja,  uma “feira” à cultura de consumo.
De acordo com esse padrão de pensamento, artistas e poetas passaram a buscar maneiras novas de se relacionarem com a arte e com a escrita. Em última instância, essa foi uma experiência que aos poucos pode se mostrar adaptada às novas circunstâncias e, então, acrescentar às artes os novos materiais de suportes tradicionais. Nesse momento, entrava em cena e não menos sucessivamente, um novo panorama, questionado por alguns críticos, mas aceito na mais sublime condição humana: o modo de ver e de sentir a arte tal como sugere  M. Ponty em seu O Visível e o Invisível: “ (...) O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo.” Os artistas, então, motivados por essa apropriação dos novos meios, passaram a adotar tais recursos como suporte para a sua criatividade. Saber ver, saber sentir a arte em todas as suas formas de linguagem é um modo de articular o diálogo.
As palavras: arte sem limite
De acordo com o exposto, para tornar possível a leitura de um texto onde a grafia é pura representação estética e, no caso contrário, se a uma obra de arte for acrescentada uma legenda, como deve ser tratada essa arte? É o texto que se atrela à imagem ou é a imagem que se quer palavra? No diálogo entre as artes, palavra e imagem discursam livremente, mas é importante compreender a fusão desses limites que separam a escrita iconográfica da escrita puramente textual. Desse modo, vale citar José Enes em seu livro Noeticidade e Ontologia:
“(...) O pensamento pensa articulando o que vê, ouve, entende, induz e conclui, atuando pela fala as virtualidades semânticas do sistema semiótico das línguas. O discurso é a articulação daquilo que o pensamento entende e diz. Com propriedade se pode dizer que as palavras tem significados e que o discurso, combinando-os, lhes dá um sentido. A combinação morfológica dos sememas forma a estrutura semântica das palavras, a integração sintática destas na significação da frase e das frases numa totalidade de sentido dá o discurso.”
Vimos que o diálogo das linguagens abre um espaço a mais para ceder lugar às artes, uma vez que o pensamento do artista articula o que vê. Como espectador, Freud confessa seus limites e suas afinidades estéticas, mas não deixa de oferecer à arte um modo de pensar.
“Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (…). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer.”

As palavras  ditam também o discurso freudiano e por meio delas  Freud (1914) se dirige aos seus leitores, tentando assegurar indulgência para o resultado de suas incursões no campo das artes. Confessa o psicanalista o seu lugar de espectador, os seus limites e suas afinidades estéticas, sugerindo que há uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da Psicanálise, da literatura e das artes. E afirma que: “(...)  os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.”

Bibliografia:
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Lisboa, Portugal: Edições
70, 1973.
ENES, José. Noeticidade e Ontologia. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990.
FREUD, S. Obras Completas de Freud. Vol. IX (1906 – 1908), “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos.
Merleau-Ponty, Maurice. O Visível e o Invisível. Ed. Perspectiva S.A. São Paulo, 2005.
OLIVEIRA, Beneval de. Arte e Dialética. Pallas Editora e Distribuidora Ltda, Rio de Janeiro, 1983.