Uma fusão de limites entre palavra, texto e imagem
“Do passado caligráfico que me vejo obrigado a lhes supor, as palavras conservam sua derivação do desenho e seu estado de coisa desenhada: de modo que devo lê-las superpostas a si próprias; são palavras desenhando palavras (...).”
(Michel Foucault)
O diálogo entre os tempos
O diálogo entre as artes, analisado num período que vai do século XV ao século XX, desenvolveu-se num contexto em que a sociedade ocidental alimentava a ideia de separação entre os signos linguísticos e as artes plásticas. No decorrer do século XX, as relações dialógicas entre as artes e a literatura estreitava-se de forma manifesta, adequando-se como parte da história com o passar do tempo. E, como todo acontecimento histórico que dá origem a uma movimentação artística, este contribuiu singularmente para que o evento pudesse acontecer na diluição dos limites entre as diferentes linguagens e, conseqüentemente, pela aproximação das diversas artes.
Desse modo, ao estreitarem-se as fronteiras entre o texto e a imagem, abriu-se, então, um espaço para a aproximação das artes, partindo-se do princípio de que vários poetas, num dado momento, apropriando-se das artes visuais, inseriu-as nos seus escritos poéticos, estampando‑as na página. Tal procedimento denomina-se atmaísmo.
Mas o que vem a ser Atmaísmo? Atmaísmo vem da união de duas palavras: Atman e Ismos. Para os hindus, “Atman” tem o sentido de alma individual originada do deus Brahan e que recebeu deste todo o poder de criação. “Ismos” é um sufixo de origem grega, que significa “capaz de captar e irradiar beleza”. Portanto, um trabalho atmaísta é aquele em que o artista inseriu um desenho ou uma pintura em sua poesia, ou vice-versa, unindo arte visual e literatura como complementação do belo. Não se trata de colagem, o trabalho atmaísta é uma arte onde convivem duas criações artísticas ao mesmo tempo, ou seja, dois trabalhos de natureza distinta compartilhando do mesmo espaço.
A partir daí, os escritores, mais precisamente os poetas, passaram a incorporar elementos gráficos e imagens em seus trabalhos. Por outro lado, os artistas visuais retomaram, então, a origem visual da escrita, utilizando-se do mesmo processo das artes para acrescentar elementos textuais em suas obras, por exemplo: os grafismos, letras e arabescos de diversos alfabetos tiveram seu papel na colagem de fragmentos de textos impressos, entre outros recursos que pudessem servir de acessório ao trabalho artístico. Naquele momento, tornavam‑se objetos de arte tais aplicativos, tanto para aplicação nas pinturas, quanto nas poesias.
A partir desse marco histórico, a palavra e a escrita passaram a compartilhar do mesmo espaço físico, agregando-se ora à imagem, ora à escrita, mas sempre em busca de um sentido que desse uma contextualização aos temas, com o fim de conceituá-las como objeto de arte. No caso específico, a imagem passou a se servir da escrita, mas o contrário também aconteceu de forma considerável, pois os elementos artísticos com seus temas atravessaram o tempo e traduziram-se do grafismo ao visual, privilegiando sentido à imagem no mesmo instante em que, juntos, puderam participar do sentido dialogal.
A reaproximação entre imagem e escrita que se deu a partir do século XIX pode contribuir no processo de resgate dos vínculos entre a palavra e a imagem. Essa contribuição representou grande importância nas experiências de determinadas épocas e de determinados artistas, tais como as do poeta francês Mallarmé, que passa a considerar a visualidade da letra e do branco do papel, como um elemento a mais em seus poemas. Assim como o trabalho pioneiro de Picasso e Braque, que com os papiers collés, inauguraram uma forte tendência da arte contemporânea, incorporando na obra artística materiais não artísticos. Portanto, letras e fragmentos retirados de jornais, partituras musicais, papéis de parede entre outros elementos gráficos, passaram a ser utilizados em obras artísticas de modo que as partes se ajustassem ao todo, tal como num quebra cabeça, criando e se ajustando de forma harmônica, para dar sentido a um outro visual artístico.
Imagens e linguagens com suas possíveis variáveis
Vimos que esses modos que se interpenetram nas linguagens, utilizando-se de imagem e de palavras parecem não cumprir uma ordem clássica. São manifestações que chegam a exprimir irrupções incontroladas, como diz Beneval de Oliveira em sua Arte e Dialética. No contexto da linguagem a palavra quer falar e deve falar; no contexto da pintura, o artista impõe à arte o dever que ela tem de se revelar, atendendo à demanda do resultado artístico desejado.
Sabe-se que há casos em que a imagem se comporta como anunciadora de seu próprio discurso, onde o diálogo se faz presente de forma iconográfica. Exemplos podem ser exibidos no caso das legendas, onde as quais emprestam sentido ao tema‑título como objeto de arte, onde, às vezes, a letra é pura ilustração que se ocupa de um lugar no texto para chamar maior atenção que o próprio texto.
E o texto é mais que arte expressa em seu contexto de arbitrariedade e subjetividade, pois o sentido do discurso está subliminarmente em ser uma legenda, com arte e linguagem. Neste caso, pode haver uma metáfora no discurso, tomando para si o lugar de ser do ser da arte, declarado no processo visual de modo intencional. E pode acontecer com a pintura (imagem) o mesmo processo da escrita - palavras: a imagem retoma para si o lugar de um status de metonímia – onde a (obra de arte) fala por si só – uma declaração da qual não necessita exemplificação à significação.
Portanto, a palavra já nasce (pronta) para falar imbuída de seu aparato lingüístico, de seu sentido semântico com seu discurso legível e não se difere da pintura, pois em ambos os casos, os signos são distintos e podem até comungar da mesma cena no mesmo espaço. O diálogo da pintura se destaca por apresentar um corte na experiência de quem a vê (a imagem), ela pode até ter palavras, mas a imagem não é palavra. A imagem, em certos momentos, nos empresta a ideia de que gostaria de nascer palavra quando estava sendo germinada na consciência do pintor. Desse modo, o ato de imaginar pode subverter a razão e, qualquer outro adorno pode poluir a imagem. Entretanto, como negar qualquer subordinação entre imagem, palavra e texto?
A partir dos anos sessenta, os meios de comunicação aumentaram sua penetração e difusão, passando a intervir em todas as instâncias da vida cotidiana, fazendo com que o convívio com as imagens caminhasse rumo à saturação. Com este avanço, houve uma crescente banalização da imagem e até do próprio texto. E o mesmo aconteceu com as relações entre os indivíduos e os objetos, ou seja, uma “feira” à cultura de consumo.
De acordo com esse padrão de pensamento, artistas e poetas passaram a buscar maneiras novas de se relacionarem com a arte e com a escrita. Em última instância, essa foi uma experiência que aos poucos pode se mostrar adaptada às novas circunstâncias e, então, acrescentar às artes os novos materiais de suportes tradicionais. Nesse momento, entrava em cena e não menos sucessivamente, um novo panorama, questionado por alguns críticos, mas aceito na mais sublime condição humana: o modo de ver e de sentir a arte tal como sugere M. Ponty em seu O Visível e o Invisível: “ (...) O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo.” Os artistas, então, motivados por essa apropriação dos novos meios, passaram a adotar tais recursos como suporte para a sua criatividade. Saber ver, saber sentir a arte em todas as suas formas de linguagem é um modo de articular o diálogo.
As palavras: arte sem limite
De acordo com o exposto, para tornar possível a leitura de um texto onde a grafia é pura representação estética e, no caso contrário, se a uma obra de arte for acrescentada uma legenda, como deve ser tratada essa arte? É o texto que se atrela à imagem ou é a imagem que se quer palavra? No diálogo entre as artes, palavra e imagem discursam livremente, mas é importante compreender a fusão desses limites que separam a escrita iconográfica da escrita puramente textual. Desse modo, vale citar José Enes em seu livro Noeticidade e Ontologia:
“(...) O pensamento pensa articulando o que vê, ouve, entende, induz e conclui, atuando pela fala as virtualidades semânticas do sistema semiótico das línguas. O discurso é a articulação daquilo que o pensamento entende e diz. Com propriedade se pode dizer que as palavras tem significados e que o discurso, combinando-os, lhes dá um sentido. A combinação morfológica dos sememas forma a estrutura semântica das palavras, a integração sintática destas na significação da frase e das frases numa totalidade de sentido dá o discurso.”
Vimos que o diálogo das linguagens abre um espaço a mais para ceder lugar às artes, uma vez que o pensamento do artista articula o que vê. Como espectador, Freud confessa seus limites e suas afinidades estéticas, mas não deixa de oferecer à arte um modo de pensar.
“Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (…). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer.”
As palavras ditam também o discurso freudiano e por meio delas Freud (1914) se dirige aos seus leitores, tentando assegurar indulgência para o resultado de suas incursões no campo das artes. Confessa o psicanalista o seu lugar de espectador, os seus limites e suas afinidades estéticas, sugerindo que há uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da Psicanálise, da literatura e das artes. E afirma que: “(...) os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar.”
Bibliografia:
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1973.
ENES, José. Noeticidade e Ontologia. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990.
FREUD, S. Obras Completas de Freud. Vol. IX (1906 – 1908), “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos.
Merleau-Ponty, Maurice. O Visível e o Invisível. Ed. Perspectiva S.A. São Paulo, 2005.
OLIVEIRA, Beneval de. Arte e Dialética. Pallas Editora e Distribuidora Ltda, Rio de Janeiro, 1983.