Fenomenologia: uma breve reflexão sobre o Cuidado
“A ciência não
tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela
simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele”.
(Merleau-Ponty, 2006)
Iniciar uma escrita ousando seguir os rastros da
percepção de Merleau-Ponty é quase um ato desmedido. Não por vinculá-la a uma
aventura sobre a ciência da fenomenologia da percepção, mas por ser um tema que
se atrela à gêneses da filosofia e da psicologia, pressupostos necessários para
que se possa reconhecer e compreender a seriedade filosófica que estará
presente como essência da
fenomenologia.
Diante de tal
ciência, o autor acima citado, assim, como Husserl, nos conduz à atentar para uma reflexão sobre
questões que, até hoje, estão longe de serem resolvidas. Husserl já havia privilegiado a fenomenologia como
caráter de “psicologia descritiva” e que esta poderia retornar “às coisas
mesmas”, resultando em desaprovação da ciência. Enquanto que, para Merleau-Ponty,
“O mundo fenomenológico não é a
explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o
reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização de uma
verdade.”
A fenomenologia de M. Ponty, ao afirmar sua crença na
filosofia como seu único logos que preexiste, reafirma-se ser, ao mesmo tempo, o
modo de como se pode perceber as coisas existentes no mundo. O autor ainda nos
diz que “A verdadeira filosofia é
reaprender a ver, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo
com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia.” Desse modo,
podemos lançar mão de seu tratado para alcançarmos a reflexão sobre um olhar
para o mundo e tudo que nele habita e, no caso específico deste artigo,
queremos atrair à atenção do leitor, para uma reflexão sobre a palavra cuidado: o cuidar em primeiro lugar de
quem se ama; depois, o cuidar com respeito aos nossos semelhantes e com
responsabilidade das coisas existentes, como forma de garantir nossa própria
existência.
Então, se
questiona: por que fenomenologia como uma reflexão sobre o cuidado? Eis a
resposta: por acreditar na essência da fenomenologia como ciência e como um
conceito que define - as essências: a essência da percepção e a essência da
consciência. Este é o ponto central deste escrito – perceber, sentir, para melhor cuidar.
Desse modo, teremos de aguçar os nossos sentidos. Para
que se possa sentir, se faz necessário perceber; perceber - exige uma condição
para a qual se possam conduzir os vários sentimentos - os quais fazem parte de
uma larga compreensão; enquanto que compreender - aciona o ato do saber para um
estado de alerta - esta ação corresponde à ação que pode mudar qualquer
realidade que se torne um fenômeno em nossa percepção.
Como funciona o fenômeno da percepção e o que em cada
um de nós pode ser alterado por estes órgãos? Basta querer predispor-se a uma
pequena observação dos fatos cotidianos para que se possa abstrair do objeto percebido
aquilo que, na maioria das vezes, estaria visível aos nossos olhos. O canal da
percepção deverá ser acionado, portanto, para analisar desde os pequenos gestos
às mais belas atitudes. Perceber uma
obra de arte é poder ver com todos os sentidos. Perceber é um saber que dialoga
com o mundo e se expressa com o que foi visto em seus vários sentidos.
Portanto, perceber é acionar a nossa capacidade de ver o que vai além de um
simples olhar.
A fenomenologia teve como um ideal de ciência o
envolvimento de duas perspectivas fundamentais: primeiro, como uma tentativa de
resgatar o ideal clássico de ciência que se havia perdido e que Husserl
percebeu no final do século XIX; segundo, para restabelecer a filosofia como
modelo de ciência rigorosa, a partir da investigação da consciência como núcleo
da unidade do discurso científico e da unidade da existência. Historicamente, até
o Renascimento, final do século XVI, conservava-se a tradição grega em relação
à concepção de conhecimento, em que conhecer tinha a ver com uma comunidade
entre o corpo e o mundo e essa comunidade só seria possível através dos
sentidos[1]. O
desvio operado por Merleau-Ponty na doutrina de Husserl viria mais tarde a
confluir para os domínios de uma nova ontologia, como uma proposta tacitamente
presente no ideário do pensador. Perante uma filosofia da consciência impõe-se o
advento de uma filosofia do corpo, visto por uma dimensão comum, aparentemente,
esquecida pela tradição filosófica ocidental[2].
Enfim, vamos à
palavra cuidado, para o que, no
momento, nos interessa como a fenomenologia.
Numa visão menos especulativa, cuidar
é uma palavra que se apresenta como experiência cientifica e filosófica,
formando assim, um novo conceito diante do cotidiano e ao lado daquilo que
vivenciamos como prática. Assim, poderíamos
dizer que existem várias formas de pensar e analisar os modos de cuidar, além de
nos proporcionar uma outra visão ampliada na forma de amar com cuidado. Cuidar,
então, no sentido científico-e-prático, acessa o modo como os cuidadores
profissionais fazem do ato de cuidar uma profissão. Diferentemente, estão os
grupos familiares que agregam, em sua prática, a relação de toda uma vivência
de experiências afetivas com ampla consciência. O cuidar, neste caso, tem a ver com a pessoa a que se ama e, por isso
mesmo, tem uma outra dimensão: abrigar com cuidado, cuidar com um zelo específico,
cuidar para prolongar afetos.
Enfim, como se apresenta a nossa percepção?
Talvez, tenhamos que refazer o modo de ver, ouvir e sentir, reavaliando o modo
pela qual fomos educados. De acordo com essa reavaliação de nossa cultura, é
imprescindível rever nossos conceitos e as novas maneiras de interferir na
prática afetiva.
A
palavra cuidado guarda
semanticamente um novo conceito que nos obriga a repensar o cuidado como objeto
não mais de forma independente de nós mesmos, mas diretamente comprometida e
envolvida no seu duplo apêndice de sentido semântico que, além de agregar um sêmen
que há no entorno do cuidar, abriga em sua estrutura um outro cuidar que vai muito
além de um simples ato que nos impele à ação. Desse modo, por mais que não tenhamos
cuidado, somos cuidados. Nesse caso, o significado possui uma dimensão
ontológica para além da filosófica, atrela-se à fisiologia como demanda M.
Ponty em sua Fenomenologia da Percepção, reafirmando existir uma constituição fisiológica
entranhada na percepção do ser humano.
Por isso,
equivale dizer que cuidar é um modo-de-ser extremamente singular, com o qual
todos nós estamos de alguma maneira envolvidos, quer seja aquele que cuida
ou quem é cuidado. Desse modo e, sem o juízo da consciência que a palavra cuidado exprime, deixaríamos de ser um ser
humano no sentido lato. Lembrem-se: “... As
palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas os seres humanos
acumulam infindáveis experiências, positivas e negativas.”
Filologia da Palavra Cuidado:
Cuidado deriva do latim
“cura”, forma antiga do latim
“coera” significado atribuído nas relações de amor, do desvelo, da preocupação
com a pessoa amada.
à Outra variante de cuidado:
“cogitare”- cogitatur”, corruptela de coydar, coidar, cuidar. O sentido de
cogitare-cogitatur é o mesmo de cura. Portanto, cuidar é tratar muito bem a
pessoa a que se ama.
à Cuidado, então,
significa: uma constante inquietação com aqueles a quem amamos e uma certa
preocupação permeada de responsabilidade, de solicitudes, de zelo e de atenção.
Sobretudo, o cuidar é um gesto que nasce do amor e prevalece independente de quaisquer
condições e status. O ato de cuidar com amor, inicia-se na formação da família,
gerando vidas e, mais tarde, esses filhos, serão os futuros cuidadores de seus
pais. Ao finalizar a vida, todos passarão por esse estágio.
Atenção: você cuida bem da pessoa que você ama? Pense que o amanhã sem essa essência
primordial do amor com certeza não haverá futuro sem remorsos.
Fontes:
Husserl
E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa
da Moeda; 1994.
Husserl E. Crisis de las
ciencias europeas y la fenomenología transcendental. México: Folios;
1984.