quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Reflexão sobre o cuidado!

Fenomenologia: uma breve reflexão sobre o Cuidado
 
 
 
 


“A ciência  não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele”.

(Merleau-Ponty, 2006)

 

Iniciar uma escrita ousando seguir os rastros da percepção de Merleau-Ponty é quase um ato desmedido. Não por vinculá-la a uma aventura sobre a ciência da fenomenologia da percepção, mas por ser um tema que se atrela à gêneses da filosofia e da psicologia, pressupostos necessários para que se possa reconhecer e compreender a seriedade filosófica que estará presente como essência da fenomenologia.

 

 Diante de tal ciência, o autor acima citado, assim, como Husserl,  nos conduz à atentar para uma reflexão sobre questões que, até hoje, estão longe de serem resolvidas.  Husserl já havia privilegiado a fenomenologia como caráter de “psicologia descritiva” e que esta poderia retornar “às coisas mesmas”, resultando em desaprovação da ciência. Enquanto que, para Merleau-Ponty, “O mundo fenomenológico não é a explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade.”  

 

A fenomenologia de M. Ponty, ao afirmar sua crença na filosofia como seu único logos que preexiste, reafirma-se ser, ao mesmo tempo, o modo de como se pode perceber as coisas existentes no mundo. O autor ainda nos diz que “A verdadeira filosofia é reaprender a ver, e nesse sentido uma história narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um tratado de filosofia.” Desse modo, podemos lançar mão de seu tratado para alcançarmos a reflexão sobre um olhar para o mundo e tudo que nele habita e, no caso específico deste artigo, queremos atrair à atenção do leitor, para uma reflexão sobre a palavra cuidado: o cuidar em primeiro lugar de quem se ama; depois, o cuidar com respeito aos nossos semelhantes e com responsabilidade das coisas existentes, como forma de garantir nossa própria existência.

 

 Então, se questiona: por que fenomenologia como uma reflexão sobre o cuidado? Eis a resposta: por acreditar na essência da fenomenologia como ciência e como um conceito que define - as essências: a essência da percepção e a essência da consciência. Este é o ponto central deste escrito –  perceber, sentir,  para melhor cuidar.

 

Desse modo, teremos de aguçar os nossos sentidos. Para que se possa sentir, se faz necessário perceber; perceber - exige uma condição para a qual se possam conduzir os vários sentimentos - os quais fazem parte de uma larga compreensão; enquanto que compreender - aciona o ato do saber para um estado de alerta - esta ação corresponde à ação que pode mudar qualquer realidade que se torne um fenômeno em nossa percepção.

 

Como funciona o fenômeno da percepção e o que em cada um de nós pode ser alterado por estes órgãos? Basta querer predispor-se a uma pequena observação dos fatos cotidianos para que se possa abstrair do objeto percebido aquilo que, na maioria das vezes, estaria visível aos nossos olhos. O canal da percepção deverá ser acionado, portanto, para analisar desde os pequenos gestos às mais belas atitudes.  Perceber uma obra de arte é poder ver com todos os sentidos. Perceber é um saber que dialoga com o mundo e se expressa com o que foi visto em seus vários sentidos. Portanto, perceber é acionar a nossa capacidade de ver o que vai além de um simples olhar.

 

A fenomenologia teve como um ideal de ciência o envolvimento de duas perspectivas fundamentais: primeiro, como uma tentativa de resgatar o ideal clássico de ciência que se havia perdido e que Husserl percebeu no final do século XIX; segundo, para restabelecer a filosofia como modelo de ciência rigorosa, a partir da investigação da consciência como núcleo da unidade do discurso científico e da unidade da existência. Historicamente, até o Renascimento, final do século XVI, conservava-se a tradição grega em relação à concepção de conhecimento, em que conhecer tinha a ver com uma comunidade entre o corpo e o mundo e essa comunidade só seria possível através dos sentidos[1]. O desvio operado por Merleau-Ponty na doutrina de Husserl viria mais tarde a confluir para os domínios de uma nova ontologia, como uma proposta tacitamente presente no ideário do pensador. Perante uma filosofia da consciência impõe-se o advento de uma filosofia do corpo, visto por uma dimensão comum, aparentemente, esquecida pela tradição filosófica ocidental[2].

 

Enfim, vamos à palavra cuidado, para o que, no momento, nos interessa como a fenomenologia. Numa visão menos especulativa, cuidar é uma palavra que se apresenta como experiência cientifica e filosófica, formando assim, um novo conceito diante do cotidiano e ao lado daquilo que vivenciamos como prática.  Assim, poderíamos dizer que existem várias formas de pensar e analisar os modos de cuidar, além de nos proporcionar uma outra visão ampliada na forma de amar com cuidado. Cuidar, então, no sentido científico-e-prático, acessa o modo como os cuidadores profissionais fazem do ato de cuidar uma profissão. Diferentemente, estão os grupos familiares que agregam, em sua prática, a relação de toda uma vivência de experiências afetivas com ampla consciência. O cuidar, neste caso, tem a ver com a pessoa a que se ama e, por isso mesmo, tem uma outra dimensão: abrigar com cuidado, cuidar com um zelo específico, cuidar para prolongar afetos.

 

 Enfim, como se apresenta a nossa percepção? Talvez, tenhamos que refazer o modo de ver, ouvir e sentir, reavaliando o modo pela qual fomos educados. De acordo com essa reavaliação de nossa cultura, é imprescindível rever nossos conceitos e as novas maneiras de interferir na prática afetiva.

 

  A palavra cuidado guarda semanticamente um novo conceito que nos obriga a repensar o cuidado como objeto não mais de forma independente de nós mesmos, mas diretamente comprometida e envolvida no seu duplo apêndice de sentido semântico que, além de agregar um sêmen que há no entorno do cuidar, abriga em sua estrutura um outro cuidar que vai muito além de um simples ato que nos impele à ação. Desse modo, por mais que não tenhamos cuidado, somos cuidados. Nesse caso, o significado possui uma dimensão ontológica para além da filosófica, atrela-se à fisiologia como demanda M. Ponty em sua Fenomenologia da Percepção, reafirmando existir uma constituição fisiológica entranhada na percepção do ser humano.

 

Por isso, equivale dizer que cuidar é um modo-de-ser extremamente singular, com o qual todos nós estamos de alguma maneira envolvidos, quer seja aquele que cuida ou  quem é cuidado. Desse modo e,  sem o juízo da consciência que a palavra cuidado exprime, deixaríamos de ser um ser humano no sentido lato. Lembrem-se: “... As palavras estão grávidas de significados existenciais. Nelas os seres humanos acumulam infindáveis experiências, positivas e negativas.”

 

Filologia da Palavra Cuidado:

 

 

Cuidado deriva do latim “cura”, forma antiga do latim “coera” significado atribuído nas relações de amor, do desvelo, da preocupação com a pessoa amada.

 

à Outra variante de cuidado: “cogitare”- cogitatur”, corruptela de coydar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatur é o mesmo de cura. Portanto, cuidar é tratar muito bem a pessoa a que se ama.

 

à Cuidado, então, significa: uma constante inquietação com aqueles a quem amamos e uma certa preocupação permeada de responsabilidade, de solicitudes, de zelo e de atenção. Sobretudo, o cuidar é um gesto que nasce do amor e prevalece independente de quaisquer condições e status. O ato de cuidar com amor, inicia-se na formação da família, gerando vidas e, mais tarde, esses filhos, serão os futuros cuidadores de seus pais. Ao finalizar a vida, todos passarão por esse estágio.

 

 Atenção: você cuida bem da pessoa que você ama?  Pense que o amanhã sem essa essência primordial do amor com certeza não haverá futuro sem remorsos.

 


Fontes:

 

Husserl E. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda; 1994.

 

Husserl E. Crisis de las ciencias europeas y la fenomenología transcendental. México: Folios; 1984.

 
Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.



[1] Husserl E. Crisis de las ciencias europeas y la fenomenología transcendental. México: Folios; 1984.
 
[2] Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006.