segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A ARTE DE ESCREVER À MÃO


 


(uma técnica quase em extinção)

 

Por: Vannda Santana  

 


 


                   Reviver a escrita a mão é processar a palavra no seu contexto teórico: Caligrafia vem do grego “calli” e significa “belo”, grafia “escrita”. Assim, a letra pode até não ser bela, mas seu registro impresso no papel guarda uma “imagem”, um sinal gráfico que significa uma marca, um registro individual, no qual se imprime a identidade individual. Poderíamos até dizer que, para além do grafismo, há um simbolismo. A letra marca esse registro no escrito, deixa “rastros” de legitimidade, imprime um caráter, mostra sua marca de identificação, sinaliza seu traço único e, assim,  denuncia quem o fez.  Portanto, a letra é muito mais que uma marca individual; através dela e do traço que simboliza sua forma pode-se definir o dono da escrita, pode-se deduzir uma estrutura bem próxima de uma identidade pessoal. Dentro desse critério, podemos conceituar a grafologia como ciência; um estudo analítico da personalidade, feito através da escrita. Trata-se de um estudo de conhecimento científico grafológico, o qual tem como referência suas características essenciais, que afirma ser capaz  de dar conta da verificação e da análise da personalidade da escrita do indivíduo. Não é aqui o caso específico.

 

A palavra Escrever origina-se do grego “gráfein” e em latim “scribere”, significando a origem da ação da escrita grafada. Aqui neste artigo, a intenção é relembrar os tempos remotos, tempos da escrita feita à mão, um processo já quase que em extinção. Poucas são as pessoas que ainda se utilizam da escrita à mão. Por isso mesmo, tento voltar no tempo, ir até lá, -  onde a memória havia se rendido lentamente aos velhos hábitos – e saltar do passado ao presente, numa espécie de ponte que vai do recuar do tempo à adequação de novas tecnologias, num exercício vigoroso de reconhecimento do novo mas sem abandonar, totalmente, velhas práticas da escrita feita à mão. A chegada desses novos hábitos mudaram, radicalmente, o rumo e a troca da comunicação; os computadores facilitaram os meios de informação, tais como os e-mail que chegaram para derrubar fronteiras e ainda falam em tempo real, onde quer que a notícia aconteça. Portanto sem fronteiras, não há mais distância entre os cidadãos de qualquer lugar do mundo. Daí, o ato de escrever à mão ter caído em desuso.
 
  Assim sendo e sem lançar mão de conceitos científicos, torna-se visivelmente fácil diferenciar a letra de uma pessoa que esteja centrada, calma, envolvida com o fazer de seu escrito, daquela outra que, sem concentração e sem capricho, deixa seus rabiscos tortuosos falar por ela mesma.
 
 Eis, então, a pergunta: uma simples observação sobre a letra seria capaz de revelar o que se passa no interior do indivíduo?  Posso até dizer que sim. Porém, não fiz nenhum estudo sobre grafologia e não seria o caso aqui em questão. O que se pretende com este texto é nada mais nada menos que oferecer ao leitor uma visão desmitificadora da escrita à mão. Depois do evento do computador, com os recursos da tecnologia da Informática, percebeu-se que a escrita a mão ficou em segundo plano e, às vezes, em total desuso. Desse modo, afirma-se que através  da grafia (guardando algumas observações) chega-se ao caráter psicológico do indivíduo, pelo tipo da letra-escrita a mão. Todo professor deve conhecer bem o tipo de letra de seus alunos; podendo garantir a diferença visual dos que são mais cuidadosos, daqueles que não o são.
 
Se o cérebro determina o que a mão deve escrever, acredito que a mão também se torne cúmplice por emprestar ao papel o grafismo impresso na folha branca. Assim, como um fio de energia criativa, a escrita escapa do pensamento pela mão e logo escorre pela ponta da caneta, em forma de tinta ou de grafite, isto é,  uma energia que se desloca das idéias, passando pela mão até chegar ao papel.
 
 De certa forma, a escrita cumpre seu ritual, plasma-se num desenho gráfico em forma de letras: letra torta, redonda, gorda,  comprida, esquisita, letra feia, a letra dos  disléxicos como classificam alguns teóricos; letra bordada, rabiscada, embolada, indecifrável, grande, pequena, subindo morro ou despencando ladeira abaixo. Não importa a ordem em que essa estrutura esteja manifesta no corpo da letra, nem a forma em que os rabiscos grafados apareçam arquitetados por gestos ou carregados de intenção. Para o nosso caso aqui, leitor, nada importa mais que a sua leitura.
 
Por outro lado, queremos chamar à atenção para os atos de criação: uma letra pode estar a serviço de uma ideia e para que esta possa vir a se fixar e se plasmar no papel, há que se ter um veículo que a conduza ao seu destino. Então, constatamos ser a mão o elemento que favorece o caminho da escrita. Daí, que toda ideia intenta contar uma história e a escrita é o único veículo de cultura que, sabiamente, irá conduzir a linguagem a fim de ser ideiaescrita. Parece complicado. Descomplicando: haja vista as histórias de cada povo e de cada tempo de sua época. Entretanto, cada tempo e povo tem seus registros alicerçados, assim, tal como na película de um filme que conserva o enredo e a trama da cultura de um passado. Desse modo,  a história também se faz reveladora de um registro. Pode  dizer-se que os fósseis humanos foram vistos e interpretados pelos paleontólogos numa perspectiva condicionada pela sua época segundo André Leroi-Gourhan.[1] A história da existência humana analisada sobre esses aspectos remontam fatos para muito além da letra.
 
  A libertação da mão tem sua origem na história da fisiologia humana, das ações e do pensamento. Sabemos que a letra é individualizada, personificada e, por isso mesmo, ela é uma identidade física, uma manifestação de um certo fisiologismo psicológico e, talvez, fosse notório lembrar que os símbolos gráficos remontam, criteriosamente, às primeiras escritas nas pedras e nas paredes das cavernas. É de lá que resgatamos os registros que foram deixados  da espécie humana: o modo de ser e de viver de cada povo. Por isso, pode-se afirmar que pela estrutura da letra, do rabisco e das formas, talvez pudéssemos chegar a uma argumentação que nos levasse ao pictórico no terreno das pesquisas mais longínquas, através de uma análise de que a ideia de todo autor é, antes e também,  a inscrição de um tempo e da própria escrita. Essa  hipótese visa sustentar que toda ideia empresta à mão uma espécie de senha no momento da transcrição da escrita. Seria, talvez, um elo mágico? Ou seria esse algo (nascido das idéias) que, ao contaminar a escrita, por meio de uma semiologia, denotaria uma informação celular como  hierarquia de um núcleo familiar?
 
 É sabido que se perdeu o status da escrita à mão diante da evolução da tecnologia na era digital, da escrita eletrônica. Então, adotamos um status para a escrita - o de ser uma vilã na revolução do mundo informatizado, - onde as normas apontam para novos paradigmas no ato de “escrever”. O rigor tecnológico cristaliza sua exigência perante a velha estrutura, enquanto que as novas formas de representações vão se alterando  no eixo de identificação que se dá entre  o escriba e a existência do texto. Estamos falando de forma física como forma padrão, deixando claro que já não é mais permitido ao texto exibir sua grafia, sua letra como arte original de uma escritura feita à mão. Há casos,  regras e, também,  exceções.   
 
Portanto, o ato de escrever vai muito além de uma simples atividade  como artefato manual. Há em torno da escrita, uma certa magia, uma forma de como a mão vai imprimindo o desejo ideal a ser  desenhado pela letra na escrita. E o papel em branco? Ah! o papel..., este nada fala mas, aceita. O papel é o próprio silêncio fundante[2] sabe ser cúmplice daquilo que o pensamento dita para a mão. O papel tem sua discrição, nem questiona a eficácia intelectual de quem escreve. O papel é assim, só se importa com o registro que fica impresso em sua pele.
 
 
Amigo leitor, a arte de escrever é um privilégio e a mão é apenas uma aliada do processo de uma idéia.
 
 
 



[1] O Gesto e a Palavra – Técnica de Linguagem. André Lerói-Gourhan. Edições 70, Lisboa 1985.
[2] As Formas do Silêncio – No Movimento dos sentidos. Eni Puccinelli Orlandi. 6ª edição da Editora Unicamp, SP, 2007.