Por: Vannda Santana
Dama Ensimesmada
Márcia Vital - Óleo s/tela -1983
A história se fragmenta em imagens, não em histórias.
W. Benjamin (2007, p. 518).
W. Benjamin (2007, p. 518).
Este quadro pertence a uma série de outros da autora que se
assemelham, tanto na forma, quanto no estilo monocromático. Nesta linha dos
marrons, a artista denuncia, com certa discrição, corpos de figuras que se
apresentam com um erotismo que se quer camuflado no emaranhado dos elementos
que lhe servem de adorno. Nesta fase de elementos que transitam entre o cubismo
e o surrealismo, percebe-se a predominância de traços em busca da forma ideal –
no ensaiar de uma transparência – para vir a ser a marca singular do traço
significativo que logo iria se estruturar como estilo de uma fase e,
consagrando, assim, a obra da artista Márcia Vital. É possível identificar, ainda,
nos trabalhos desse momento, esse marco como presença do traço de “claridade”,
de “luminosidade” no delineamento dos contornos, ao espraiar-se de dentro do
escuro do marrom, para exibir-se como um detalhe de complemento ao transbordar do
limite extremo, onde as figuras se mostram, sugerindo movimentos. Esses traços sugerem
uma ligeira semelhança estética com o estilo cubista ao mesmo tempo em que nos
faz acreditar que, dada a sua formação profissional (professora e mestra em
Literaturas), guarde uma referência estética, em seu acervo inconsciente, à
obra de Tarsila do Amaral.
Márcia Vital nos convida a rever a nossa própria história
com o fervilhar de acontecimentos culturais, chamando-nos à atenção para as tais
marcas de seu traço peculiar. Através de suas figuras com pernas e braços
alongados, marca singular de seu estilo, sugerem lembranças da fase de
expressões surrealistas. Esses finos traços de claridades em torno da própria
figura emprestam aos olhos esse instante imaginativo: um vislumbrar de formas
sensuais e femininas, anatomias que se apresentam a compor o arranjo que se
complementa numa espécie de chapéu vestindo a cabeça.
Nessas formas anatômicas
concretas e decodificáveis, conjugam-se figuras eróticas como componentes desse
arranjo, numa reunião de traços em formas de corpos nus que compõem o figurino em
torno da cabeça, como se fosse um chapéu. Guardam-se nesta visão as devidas
sensações por nos permitir lembrar uma Medusa, figura mítica que carrega o
conceito de uma criatura terrível entre as (divindades
marinhas). Arrefecendo nossa memória, conta a lenda tratar-se de uma linda
mulher com asas de ouro, mas que foi castigada por Atena (deusa da sabedoria)
por ter feito amor com Posseidon (deus do mar). Atena, a deusa da sabedoria, transformou
Medusa em uma terrível criatura, com pele escamosa e cabeleira formada por
serpentes. A figura temida tornou-se mortal, seus olhos transformavam em
estátua de pedra todos aqueles que a
encarassem.
Diante do exposto, daquilo que se pode ver, a
artista, intelectual sensível, criou para a imagem o símbolo de seus traços e
pôs relevo em sua pintura como discurso perceptivo fenomenológico; emprestou ao
olhar uma metáfora inconsciente, sugerindo aos olhos do observador, um aguçar
da memória em relação à possível semelhança com a figura mitológica a qual nos
referimos anteriormente. O arranjo da cabeça, não guarda mais alusão às serpentes;
ele, agora, adquiriu pernas e braços para ser uma fisiologia de movimentos. A
artista colocou no rosto da figura um pseudo véu no lugar dos olhos; portanto, os
olhos, agora, já não mais suscitarão o medo, pois eles já não cumprem o papel
de vingança. O olhar, agora, transmutou-se para vir a ser o Ser da figura central
em a Dama Ensimesmada.
Desse modo, bem longe do Olympus, mas bem
próximo das formas com suas vibrações e emoções, lançamos o nosso olhar para o
objeto de arte sem medo de ficarmos petrificados. Assim, podemos atribuir a esta
obra os seus efeitos de contemplação; de um
olhar que procura ver sem antes eliminar do foco a imagem; um olhar que mesmo
em face dos ângulos ou da planificação
das formas, não se sujeita a meras ilusões de composição. Atribuímos para esta
obra seu significado maior como possibilidades de sugestões, onde se pode ler
na imagem aquilo que nos revelam os
relevos: desde uma simples sedução a qual nos faz instigar a imaginação, até
mesmo para um olhar crítico à procura do traço perfeito de acordo com seu tempo
histórico. E para os mais atrevidos, sugiro asas ao pensar que num dado
momento, o objeto de arte possa levá-los a subtrair da obra de arte o que a
ética lhes possa acrescentar: desde uma simples sublimação até mesmo um certo
plasmar selvagem, diante dos relevos sutis.
Transgressão ou
uma leitura possível da imagem? O conceito
no qual o objeto de arte, Dama
Ensimesmada, se apresentou para nós, suscita-nos considerá-lo uma abstração
ou uma transfiguração da própria imagem. Porém, dentro da mesma homologia de
cores, o matiz do marrom procura uniformizar-se ao atingir o claro dos limites,
como mostra a figura com seus aspectos quentes que logo se ocupariam em fazer a
diferença no estilo da artista. Esse destaque monocromático surgiu como um
processo comum em relação a outras telas do mesmo período, como por exemplo, a
obra Rosácea Sensual, a qual se reveste
dos mesmos tons de marrom e o mesmo traço de marca simbólica.
A maior referência desta obra encontra-se nas
formas das figuras que vão se delineando e ganhando espaço na definição dos contornos
e das transparências; um ponto comum como prenúncio da abstração do que estaria
por vir em futuros trabalhos. O quadro, Dama Ensimesmada, denuncia com sua pose
um requinte no perfil da forma retratada e a artista, mesmo em início de
carreira, já ousava demonstrar seu traço firme ao denotar sua forte
personalidade no manejo do pincel. O rosto de Dama Ensimesmada mostra-nos um perfil de mulher com a boca
finamente talhada: uma intenção ou um acaso? Não importa. A figura prende o
observador pela irreverência dos motivos sensuais como se pretendesse
sussurrar-lhe algo imprevisível. Talvez, a figura, aparentemente plácida não
desperte a atenção para um olhar que não deseje interrogá-la, mas, sim, pelo
que ela possa simbolizar no olhar do espectador.
Este quadro faz parte de uma produção em que a artista
precedia uma fase experimental dos tons de azuis, uma fase que teve como ênfase
imagens futuristas. Em outra oportunidade, falaremos dessas obras belíssimas.