terça-feira, 11 de março de 2014

Leituras possíveis de imagens da imagem


    Por: Vannda Santana     
 
       Dama Ensimesmada

   Márcia Vital - Óleo s/tela -1983
 

A história se fragmenta em imagens, não em histórias.
                                      W. Benjamin (2007, p. 518).

 

Este quadro pertence a uma série de outros da autora que se assemelham, tanto na forma, quanto no estilo monocromático. Nesta linha dos marrons, a artista denuncia, com certa discrição, corpos de figuras que se apresentam com um erotismo que se quer camuflado no emaranhado dos elementos que lhe servem de adorno. Nesta fase de elementos que transitam entre o cubismo e o surrealismo, percebe-se a predominância de traços em busca da forma ideal – no ensaiar de uma transparência – para vir a ser a marca singular do traço significativo que logo iria se estruturar como estilo de uma fase e, consagrando, assim, a obra da artista Márcia Vital. É possível identificar, ainda, nos trabalhos desse momento, esse marco como presença do traço de “claridade”, de “luminosidade” no delineamento dos contornos, ao espraiar-se de dentro do escuro do marrom, para exibir-se como um detalhe de complemento ao transbordar do limite extremo, onde as figuras se mostram, sugerindo movimentos. Esses traços sugerem uma ligeira semelhança estética com o estilo cubista ao mesmo tempo em que nos faz acreditar que, dada a sua formação profissional (professora e mestra em Literaturas), guarde uma referência estética, em seu acervo inconsciente, à obra de Tarsila do Amaral.

 Não estamos classificando nenhuma abordagem teórica do estilo de Márcia Vital, apenas sugerimos um olhar à obra de arte como elemento de expressão artística, apontando suas possíveis linguagens da imagem: de acordo com o que se refere a epígrafe de W. Benjamin. Por outro lado, não intencionamos ilustrar seu aspecto teórico nem mesmo impor o nosso olhar; a arte que aqui se expõe fala por si.

Márcia Vital nos convida a rever a nossa própria história com o fervilhar de acontecimentos culturais, chamando-nos à atenção para as tais marcas de seu traço peculiar. Através de suas figuras com pernas e braços alongados, marca singular de seu estilo, sugerem lembranças da fase de expressões surrealistas. Esses finos traços de claridades em torno da própria figura emprestam aos olhos esse instante imaginativo: um vislumbrar de formas sensuais e femininas, anatomias que se apresentam a compor o arranjo que se complementa numa espécie de chapéu vestindo a cabeça.

 Nessas formas anatômicas concretas e decodificáveis, conjugam-se figuras eróticas como componentes desse arranjo, numa reunião de traços em formas de corpos nus que compõem o figurino em torno da cabeça, como se fosse um chapéu. Guardam-se nesta visão as devidas sensações por nos permitir lembrar uma Medusa, figura mítica que carrega o conceito de uma criatura terrível entre as (divindades marinhas). Arrefecendo nossa memória, conta a lenda tratar-se de uma linda mulher com asas de ouro, mas que foi castigada por Atena (deusa da sabedoria) por ter feito amor com Posseidon (deus do mar).  Atena, a deusa da sabedoria, transformou Medusa em uma terrível criatura, com pele escamosa e cabeleira formada por serpentes. A figura temida tornou-se mortal, seus olhos transformavam em estátua de pedra  todos aqueles que a encarassem.

 Diante do exposto, daquilo que se pode ver, a artista, intelectual sensível, criou para a imagem o símbolo de seus traços e pôs relevo em sua pintura como discurso perceptivo fenomenológico; emprestou ao olhar uma metáfora inconsciente, sugerindo aos olhos do observador, um aguçar da memória em relação à possível semelhança com a figura mitológica a qual nos referimos anteriormente. O arranjo da cabeça, não guarda mais alusão às serpentes; ele, agora, adquiriu pernas e braços para ser uma fisiologia de movimentos. A artista colocou no rosto da figura um pseudo véu no lugar dos olhos; portanto, os olhos, agora, já não mais suscitarão o medo, pois eles já não cumprem o papel de vingança. O olhar, agora, transmutou-se para vir a ser o Ser da figura central em a Dama Ensimesmada.

Desse modo, bem longe do Olympus, mas bem próximo das formas com suas vibrações e emoções, lançamos o nosso olhar para o objeto de arte sem medo de ficarmos petrificados. Assim, podemos atribuir a esta obra os seus efeitos de contemplação; de um olhar que procura ver sem antes eliminar do foco a imagem; um olhar que mesmo em face dos ângulos ou da  planificação das formas, não se sujeita a meras ilusões de composição. Atribuímos para esta obra seu significado maior como possibilidades de sugestões, onde se pode ler na imagem aquilo que  nos revelam os relevos: desde uma simples sedução a qual nos faz instigar a imaginação, até mesmo para um olhar crítico à procura do traço perfeito de acordo com seu tempo histórico. E para os mais atrevidos, sugiro asas ao pensar que num dado momento, o objeto de arte possa levá-los a subtrair da obra de arte o que a ética lhes possa acrescentar: desde uma simples sublimação até mesmo um certo plasmar selvagem, diante dos relevos sutis.

Transgressão ou uma leitura possível da imagem?  O conceito no qual o objeto de arte, Dama Ensimesmada, se apresentou para nós, suscita-nos considerá-lo uma abstração ou uma transfiguração da própria imagem. Porém, dentro da mesma homologia de cores, o matiz do marrom procura uniformizar-se ao atingir o claro dos limites, como mostra a figura com seus aspectos quentes que logo se ocupariam em fazer a diferença no estilo da artista. Esse destaque monocromático surgiu como um processo comum em relação a outras telas do mesmo período, como por exemplo, a obra Rosácea Sensual, a qual se reveste dos mesmos tons de marrom e o mesmo traço de marca simbólica.

 A maior referência desta obra encontra-se nas formas das figuras que vão se delineando e ganhando espaço na definição dos contornos e das transparências; um ponto comum como prenúncio da abstração do que estaria por vir em futuros trabalhos.  O quadro, Dama Ensimesmada, denuncia com sua pose um requinte no perfil da forma retratada e a artista, mesmo em início de carreira, já ousava demonstrar seu traço firme ao denotar sua forte personalidade no manejo do pincel. O rosto de Dama Ensimesmada mostra-nos um perfil de mulher com a boca finamente talhada: uma intenção ou um acaso? Não importa. A figura prende o observador pela irreverência dos motivos sensuais como se pretendesse sussurrar-lhe algo imprevisível. Talvez, a figura, aparentemente plácida não desperte a atenção para um olhar que não deseje interrogá-la, mas, sim, pelo que ela possa simbolizar no olhar do espectador.

Este quadro faz parte de uma produção em que a artista precedia uma fase experimental dos tons de azuis, uma fase que teve como ênfase imagens futuristas. Em outra oportunidade, falaremos dessas obras belíssimas.