O
espelho
O que tento lhe traduzir é mais
misterioso, se enreda nas raízes mesmas do ser, na fonte impalpável das
sensações.
J. Gasquet, Cézanne
O edifício vizinho invadiu minha sala. Entrou pela janela e se
aboletou inteiro num pequeno espelho sobre a mesa de jantar. Estranhamente, o
“invasor” trouxe do lado de lá a Praça do Metrô e o prédio em frente (este do qual estou falando) e tudo
isso refletido em suas vidraças, além de um lindo pôr de sol como artífice
de grandes pareidolias. E o espelho, ao ostentar
seu espetáculo, não se dá conta de tanto brilho. E a sala, mil vezes menor,
cede à imagem o espaço perceptivo.
Falar sobre os “espelhos” não nos parece muito simples, quando
se tem um Umberto Eco seguido de um Machado de Assis. Mesmo assim, vou me aventurar
em relatar o que vi numa tarde de outono. Inicio este escrito questionando o
desafio da física e da geometria, ao ver parte de um bairro com praças e
prédios refletida no espelho; ou seria a
perplexidade do meu olhar diante daquelas imagens especulares? A sala, meio
inibida, é o palco desse cenário de tamanha grandeza para o espetáculo. A
janela de vidro fechada, nada fez para impedir tal invasão, onde as figuras
multiplicadas com seus mosaicos de ilusões vestem-se de ambíguas imagens que se
recriam de tons multifacetados. Meu inerte olhar apenas observa. E é o
que tento aqui compor: fazê-los ver com palavras
pensando que aquilo que vi atrela-se ao invisível nas palavras de M. Merleau-Ponty A visão
é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser.
E o espelho? Há um
espectador atento que a tudo assiste como num filme com início, meio e fim: a lâmina luminosa vai rolando a cena
construída de inúmeras faces. Os objetos são imagens distorcidas que foram
deslocadas de suas fronteiras entre o real e o imaginário, gerando esse fenômeno
de percepção, aliado à especulação das imagens
que dançam refletidas no espelho. Não se trata de fotografia, não há
delírio que dê conta desse imaginário de transposição do real. O prédio, a
praça, a janela e o espelho são elementos que formam a ilusão desse instante; a
contemplação do espaço e o surgimento de um conceito de vazio, vazio de significado,
ganha uma nova dimensão diante do contexto de uma visão ilusória.
Ao tentar descrever o processo, não o processo do espelho, mas a
metáfora enganosa do real que aponta para uma imagem de realidade onde o
reflexo apenas distorce aquilo que está sendo refletido e desloca o objeto para
um outro lugar, gerando uma ilusão ou um paradoxo. Nada foge a especular
observação. A cena importada pelo espelho transita refletida pela dupla visão e
possui uma simetria semelhante ao objeto real.
Porém, aos poucos, esse objeto real vai sendo diluído pela luminosidade
do sol e, aos poucos, lentamente, as cores vão se apagando em suas modulações, mudando
o cenário das imagens pela radiação do sol.
Desse modo, cabe ao espectador refletir sobre aquilo que ele vê,
pois nem sempre o objeto visto obedece aos critérios de sua visão. Por outro
lado, a descrição de sua mente afirma ser legítima a realidade exposta daquele
cenário. As imagens, quer sejam reais
ou artísticas, são sempre possibilidades de uma construção, de uma
experiência vivida; ainda que, em suas
histórias, haja máscaras para romper e compor fronteiras entre o simbólico e o
imaginário.
E o espelho surge, assim, como objeto comum, representante não
muito fiel do Outro ou de um lugar. Mas
o espelho que estou descrevendo é realmente fantástico: ele ocupa o lugar da
ilusão na consciência humana, mostrando a incrível cena raptada de outros
lugares de imagens multifacetadas; refletindo fragmentos quase reais, que
ficaram entranhados no “olhar” que, tal
como o espelho, também repassa o que vê do objeto materializado na difusa
lâmina da retina. Esta é uma percepção diante do afastamento que há entre o
olhar no espelho e a forma que nele fora projetada.