terça-feira, 2 de junho de 2015

O ESPELHO


O espelho

O que tento lhe traduzir é mais misterioso, se enreda nas raízes mesmas do ser, na fonte impalpável das sensações.

J. Gasquet, Cézanne

 

O edifício vizinho invadiu minha sala. Entrou pela janela e se aboletou inteiro num pequeno espelho sobre a mesa de jantar. Estranhamente, o “invasor” trouxe do lado de lá a Praça do Metrô e o prédio em  frente (este do qual estou falando) e tudo isso refletido em suas vidraças, além de um lindo pôr de sol como artífice de  grandes pareidolias. E o espelho, ao ostentar seu espetáculo, não se dá conta de tanto brilho. E a sala, mil vezes menor, cede à imagem o espaço perceptivo.

Falar sobre os “espelhos” não nos parece muito simples, quando se tem um Umberto Eco seguido de um Machado de Assis. Mesmo assim, vou me aventurar em relatar o que vi numa tarde de outono. Inicio este escrito questionando o desafio da física e da geometria, ao ver parte de um bairro com praças e prédios refletida no espelho;  ou seria a perplexidade do meu olhar diante daquelas imagens especulares? A sala, meio inibida, é o palco desse cenário de tamanha grandeza para o espetáculo. A janela de vidro fechada, nada fez para impedir tal invasão, onde as figuras multiplicadas com seus mosaicos de ilusões vestem-se de ambíguas  imagens que se  recriam de tons multifacetados. Meu inerte olhar apenas observa. E é o que tento aqui compor: fazê-los ver com palavras pensando que  aquilo que vi  atrela-se ao invisível nas palavras de  M. Merleau-Ponty  A visão é o encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser. 

 E o espelho? Há um espectador atento que a tudo assiste como num filme com início,  meio e fim: a lâmina luminosa vai rolando a cena construída de inúmeras faces. Os objetos são imagens distorcidas que foram deslocadas de suas fronteiras entre o real e o imaginário, gerando esse fenômeno de percepção, aliado à especulação das imagens que dançam refletidas no espelho. Não se trata de fotografia, não há delírio que dê conta desse imaginário de transposição do real. O prédio, a praça, a janela e o espelho são elementos que formam a ilusão desse instante; a contemplação do espaço  e o  surgimento de um conceito de vazio, vazio de significado, ganha uma nova dimensão diante do contexto de uma visão ilusória.

Ao tentar descrever o processo, não o processo do espelho, mas a metáfora enganosa do real que aponta para uma imagem de realidade onde o reflexo apenas distorce aquilo que está sendo refletido e desloca o objeto para um outro lugar, gerando uma ilusão ou um paradoxo. Nada foge a especular observação. A cena importada pelo espelho transita refletida pela dupla visão e possui uma simetria semelhante ao objeto real.  Porém, aos poucos, esse objeto real vai sendo diluído pela luminosidade do sol e, aos poucos, lentamente, as cores vão se apagando em suas modulações, mudando o cenário das imagens pela radiação do sol.

Desse modo, cabe ao espectador refletir sobre aquilo que ele vê, pois nem sempre o objeto visto obedece aos critérios de sua visão. Por outro lado, a descrição de sua mente afirma ser legítima a realidade exposta daquele cenário. As imagens, quer sejam reais ou artísticas, são sempre possibilidades de uma construção, de uma experiência  vivida; ainda que, em suas histórias, haja máscaras para romper e compor fronteiras entre o simbólico e o imaginário.

E o espelho surge, assim, como objeto comum, representante não muito fiel do Outro ou de um lugar.  Mas o espelho que estou descrevendo é realmente fantástico: ele ocupa o lugar da ilusão na consciência humana, mostrando a incrível cena raptada de outros lugares de imagens multifacetadas; refletindo fragmentos quase reais, que ficaram entranhados no “olhar” que,  tal como o espelho, também repassa o que vê do objeto materializado na difusa lâmina da retina. Esta é uma percepção diante do afastamento que há entre o olhar no espelho e a forma que nele fora projetada.