LENDAS E “CAUSOS”
Erotildes e o sabugo de milho
Uma história dentro das
histórias da coletividade humana
“Lenda que se
difundiu e vive nos lábios do povo, jamais morre, porque é deusa imortal.”
(Hesíodo, 736)
Lendas e “causos”
sempre povoaram a memória coletiva da humanidade com suas peripécias coloridas
e, às vezes, adornadas por um certo mistério. Relatos primitivos com recheio de
frases e linguagens ritmadas, concisos em sua forma de representação, possuíam uma
fórmula verbal que os caracterizavam: “era uma vez” . Assim era o verbete em
quase todas as canções e versos como sustentação da oralidade. Talvez, pela
falta de consciência do próprio ser em relação ao tempo, nem todos os relatos tiveram registro em suas escrituras, e
o que nos chega ao conhecimento se fundamenta na oralidade popular.
Historicamente, são essas concepções e ações
que irão nortear o imaginário humano. Ouvir uma história é vive-la; e deixar-se
impregnar por tais influências é um dos caminhos para se ampliar a consciência.
Os relatos primitivos do pensamento filosófico desde a Antiga Grécia até os
dias atuais percorreram toda a tradição desde Platão. Com o avanço da escrita através
dos séculos, uma marca histórica desse pensamento ocidental aproxima a
linguagem oral da linguagem escrita, assinalando, assim, um trânsito de existência
cultural inscrita no inconsciente de cada sociedade. Essa evolução acontece
pela urgência de expressão e esta só se realiza
quando a experiência se totaliza e se completa através dos arquétipos e
de elementos, tais como o mito, a religião, o sagrado e o profano. Esses
elementos arquetípicos ao apropriar-se do pensamento e da imaginação, cedem lugar
às tramas e teias da consciência humana, num movimento de fantasia e de
verdadeira expressividade, tanto na forma de exaltar, como na de cultuar a
existência ao apropriar-se das imagens da natureza.
Do longínquo
passado, resta-nos a maravilhosa tradição com vestígios de antigos mitos, de
celebrações sobre divindades, de experiências religiosas e culturais. E é a
partir dessas experiências, entre a imaginação e a realidade de mundos tão
distantes, que surge um ponto comum na história dos povos - o poder criativo e
imaginativo, fantasiando e criando estórias. Diz Nicolescu que a imaginação verdadeira engendra assim a
realidade, num contínuo brotar, numa perpétua gênese.[1]
Sobre a imaginação, Pierre Deghaye afirma ser a faculdade de produzir imagens. E entre a fantasia e a realidade,
estão os registros imaginários, quer sejam na escrita do real ou na ficção com
suas imagens. Mas é dessa imaginação verdadeira que, de certa forma, também pude
resgatar heranças culturais que hoje, neste relato, exponho a estória de
Eroltildes.
Esse legado da história de hábitos, costumes e
crenças da humanidade, atravessou o tempo e participa da memória contemporânea desde
os mais antigos povos. Portanto, é possível ler o passado através dos tempos e é
possível compreender o presente naquilo que se ouve das variadas etnias de grupos
sociais com seus ritos culturais conservadores. Desse modo, as Lendas se fundem
com os Causos que, a partir de então, passam a ser fato comum ou história do
cotidiano de cada povo e não importa a sua origem.
E aqui vai o
“causo” de Erotildes e o sabugo de milho
– uma estória dentro da história – um acontecimento real. O episódio se
desenvolve delineando-se através de imagens engendradas no inconsciente familiar
e é desse modo que a narrativa ganha status de conto: uma realidade tingida de
fantasia literária no frescor dos dias atuais. Encontrei na linguagem natural
dos meus familiares os elementos que conduzirão o motivo do fato real ao objeto
central da estória. Quando me propus a escrever o que aconteceu com a menina
Erotildes, pensei ser possível descrever os fatos sem ter que maquiar certas figuras de
linguagem. Porém, a força da palavra tenta impingir sua ação aos elementos da
narração. Fiz, então, uma breve retrospectiva da árvore genealógica em busca dos
costumes caseiros pautados na realidade de suas vidas; o instante onde surge a
estória real e o momento quando ela passa a ser recontada com mero requinte
entre as antíteses e os paradoxos, resultando em hipérboles no processo do reinventar.
Mas não é isto que se diz: quem conta um conto aumenta um ponto? Aqui, o causo não
poderia ser diferente.
E foi assim, vivenciando essas estórias tão
reais e algumas supostamente imaginárias, mas narradas pelos meus antepassados que
ousei atrever-me a exercer tal função neste escrito. Essas marcas do real estão,
por assim dizer aqui recheadas de “enigmas”
e ainda falam de um tempo marcado por faltas elementares, de uma época sem
rádio, sem televisão e sem livros, mas amalgamados por infinitas fantasias em
minha mente. E é dessa trama extraída do real, que proponho escrever este conto,
ora resvalando na ficção imaginária, ora tecendo o fio da trama nos fatos reais,
que foram contados por minha avó, mãe e tias. Se você leitor quiser saber mais sobre
o que aconteceu com Erotildes e o Sabugo de Milho, vai ter de seguir comigo até
um lugar chamado Queima Sangue, em Paraíba do Sul. Então, vamos lá.
Primeiro ato:
Era uma vez uma
menininha muito loirinha igualmente sapequinha, de corpo franzino, de pés
descalços e de vestidos rodados, rodopiava cirandas no chão de barro pisado.
Foi então, quando, inesperadamente, escorregou no sabugo de milho e de fato caiu,
fraturando o ilíaco.
Segundo ato:
Entra em cena
dona Hercília, mãe da menina Erotildes, senhora de um currículo invejável, mateira,
raizeira, rezadeira, parteira, entre muitas outras habilidades. Hercília, como
o próprio nome indica, significa orvalho ou seja, senhora da “natureza”. E ela
era assim: razão-e-ação em suas atitudes, obedecendo sempre aos seus instintos
numa relação íntima com a natureza. Das muitas virtudes dessa mulher incrível que
foi minha avó, algumas transbordam em sua sabedoria natural, outras atitudes
acompanham a grande capacidade de tudo resolver com aparente serenidade, muita intuição
e uma inigualável coragem sem distinção. Do pouco contato que tive com ela na
minha infância, nada melhor e mais eficaz que ouvir o ressoar das vozes sobre
os seus feitos. E a prova significativa de sua obra ficou para sempre marcada
no corpo de sua filha Erotildes. Acredito que nenhuma outra mãe teria vivenciado
tal dissabor com a relevância de saber colocar de lado a sua própria tensão e angústia
e, assim, agir com naturalidade e aparente frieza, coragem e qualidades
necessárias naquele instante decisivo. Portanto, esse era um dos seus maiores quesitos:
ousadia.
Minha avó Hercília era fisicamente magra,
morena, cabocla brejeira, estatura mediana, mais para alta; além de leve e
lépida feito um azougue, tinha no olhar um aspecto desconfiado. Neste breve
intróito, quero destacar que, apesar do meu pouco contato com essa avó índia na
origem e nos hábitos, severa nos costumes e decidida ao extremo tanto na forma
de ser, como no modo de viver e de ver a vida existe algo que nos aproxima. Entre
mim e minha avó, apesar de não haver muitas semelhanças, de repente, salta do
íntimo um ponto comum de grande convergência. Na aparência física nada nos aproxima, mas no
modo de ser há qualquer coisa desse nada que nos une em nosso DNA e talvez
residam na genética os traços mais ancestrais. Desses registros, a intuição é
uma marca singular. Mas o que realmente predomina é o nosso interesse comum
(meu e dela) pelas coisas da natureza, pelo conhecimento das ervas medicinais
com o seu encanto e seu poder de cura. Haja vista a minha vocação profissional
a qual dedico todo o meu tempo em pesquisas constantes como terapeuta. Desses
registros, a intuição é uma marca singular. Dos atributos herdados de minha
avó, esta foi a minha herança.
Eu era ainda
menina quando passei a ouvir, pelos cantos da casa, a história da tia Erotildes.
Como qualquer criança, não me faltava curiosidade. Ficar, portanto, de ouvidos
atentos aos assuntos e aos feitos de minha avó Hercília era algo instigante. À
medida que o tempo passava, crescia em mim um maior interesse pelo caso da
menina Erotildes (minha tia). Um dia fiz minha mãe contar a estória várias
vezes seguidas. Quanto mais minha mãe recontava a estória, maior minha avó se
tornava diante dos meus sentidos, mas, curiosamente, quanto mais sua figura
impar ganhava uma dimensão imensa sobre
seus feitos, mais distante ela ficava dos meus olhos, tal como um ídolo
intocável. No desenrolar da estória ela
era um mito real que se estruturava em minha cabeça. Dona Hercília, figura
mítica, uma espécie de deusa – quase inatingível. Aí, eu cresci (não muito) e
estou aqui contando esta estória para você.
Erotildes, a
filha de dona Hercília, que deu origem a este conto, carrega a marca de uma
saga heroica – vencer não somente a dor, mas o desajuste que o acidente lhe traria
com o tempo e em seguida o resultado como causa e consequência. E é nesse momento
que a estória perde seu e minúsculo para ganhar um H maiúsculo – uma verdadeira “História” – passaporte
para entrar em ação.
Terceiro ato:
Tinha a menina
seis anos de idade quando o episódio aconteceu. Como toda criança saudável,
corria ela livremente pelas terras do sítio quando, inexplicavelmente, sem que
nada impedisse sua jornada olímpica, pisou numa espiga de milho, tropeçou,
escorregou e caiu, ficando lá, estendida no chão, sem poder se levantar. Foi aí
que minha avó entrou em ação: pegou a filha no colo, calmamente, a levou com
todo o jeito e a colocou sobre a cama para uma breve “examinada”, apalpando-a
com dedos intuitivos, à procura de saber o que teria acontecido com a menina. Imediatamente,
percebendo a gravidade daquele tombo, a mateira dona Hercília não hesitou em
dar ouvidos à intuição, pernas à razão e asas à direção da maior de todas as
ações: embrenhou-se mata adentro em busca da solução.
Dona Hercília
era conhecida nas redondezas como a maior de todas as curandeiras do lugar,
tinha ela agora, em suas mãos o dever de fazer valer seu jargão. Mas esta era a
maior de todas as missões já executadas até aquele momento. Considerada “mestra”
em curar qualquer tipo de problema com suas folhas e raízes milagrosas, teria ela,
agora, de colocar em prova toda a sua eficácia, até por que, tratava-se de sua
filha e os recursos médicos e hospitalares estavam há quilômetros dali. Então,
só restavam os seus saberes. Era o momento de chamar o conhecimento empírico e fazê-lo
funcionar. Estava em suas mãos resolver um caso dramático e TRAUMÁTICO com um diagnóstico de possível fratura e
deslocamento do ilíaco. Como resolver tal fato com ervas? Eis aí o impasse,
diante da gravidade e do estado em que se encontrava sua filha, o que fazer longe
dos recursos da medicina ortodoxa, longe, literalmente, no sentido pleno da
palavra? O lugarejo chamado Queima Sangue, há setenta anos atrás, não dispunha
de condução, muito menos de recursos urbanos. Para se chegar a uma cidade mais
próxima, onde pudesse encontrar algum Hospital, mesmo que precário, teria de
viajar em carro de boi, algumas horas de
solavancos por uma estrada de chão, de poeira avermelhada, entre serras e
cachoeiras, rios e pinguelas. Tudo isto
seria lindo e até pitoresco, se não fosse a urgência e a gravidade que o caso
exigia.
Quarto ato:
Mas
vamos ao “causo”, que é isto que nos interessa.
Dona Hercília, como boa filha da natureza que era, não hesitou em despir-se
do “orvalho” e enfrentá-lo diante do problema: saiu resoluta mata adentro em busca da erva que seria a
solução para a cura de sua filha. A raizeira embrenhou-se intimamente no “ser
da Selva” na selva de sua real aflição. Chegou a hora de por em evidência
coragem e energia intuitiva aliadas aos saberes ancestrais. Sem outras
possibilidades, segue apenas a demanda de uma ordem interna e milenar. Uma voz silenciosa
direciona a mateira e aponta para a erva, aquela que certamente seria
necessária. Estamos diante de um tal “cipó” – Cipó cabeludo. De posse do Cipó, a
mãe e “médica”, médica sim, pois só havia este único recurso. A pobre criatura correu
para sua casa para por em prática os procedimentos equivalentes à cura de uma
fratura com deslocamento de ilíaco. O Cipó desprenderia uma resina fantasticamente
curativa - matéria prima básica de princípios ativos para casos como estes.
Contava minha avó Hercília que este cipó tinha
um poder tão mágico de entender a cura no seu tempo – quando o órgão afetado
tivesse sido restaurado a resina do Cipó já teria feito seu papel de cura. O
Cipó só se soltaria da pele depois de cicatrizada, expulsando a cataplasma grudada
na pele, numa espécie de expurgo. Concluía
minha avó: este tempo será em torno de 30 a 40 dias, tempo suficiente para deixar agir
o efeito anti-inflamatório e o cicatrizante. A partir daí é só esperar que a natureza
cumpra seu ato curativo.
A confiança de
dona Hercília no conhecimento natural, faz desse caso mais que uma aventura,
tanto em torno da lenda do cipó, quanto na sua própria crença. Aparentemente, o
Cipó dera conta do recado e a “doutora” herbarista também. Não fosse o desconhecimento de anatomia, tudo estaria muito bem. A
faculdade do “mato” da mãe natureza, não incluíra a cadeira de ortopedia em sua
aprendizagem. No caminho dos saberes de dona Hercília estavam apenas as ERVAS e
a INTUIÇÃO. E ao Cipó não fora dado o direito de exercer a cátedra de
fisiologia humana, ele só fez o que sabia fazer: curar, não se importando com o que estava fora de
lugar. Por isso, Erotildes ficou com uma sequela: teve sua perna encolhida, mas
nada que a impedisse de andar, dançar, viver, casar e ter lindos filhos.
Esta é apenas uma das muitas estórias de verdadeiras
histórias de gente simples, de coisas do interior, de pessoas que apenas sabem
praticar o bem. Quando lhes faltam recursos, usam então os seus saberes naturais
e suas capacidades intuitivas em prol da saúde. E eu só contei esta estória
para que ela não se perdesse no tempo e no limbo da minha memória. Se você
leitor gostou, me aguarde. Na próxima, falarei da outra avó – a paterna.
Vannda
Santana
[1] Basarab
Nicolescu. Ciência, Sentido & Evolução. A cosmologia de Jacob Beehme, Attar
Editorial, São Paulo, 1995 p. 91.