sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A inocência poética nas palavras: "Exercícios de Ser Criança" de Manoel de Barros

A inocência poética nas palavras:“Exercícios de ser Criança” de Manoel de Barros



O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro  botando ponto no final da frase.Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
Manoel de Barros


O Exercício de Ser Criança de Manoel de Barros apresenta poemas narrativos que contam duas histórias: "O menino que carregava água na peneira" e "A menina avoada". O livro tem como introdução para essas duas histórias um poema que trata do absurdo e dos despropósitos como matéria própria da poesia. Exercício de ser Criança deve ser lido por qualquer indivíduo e em todas as idades, “um exercício de metalinguagem” onde a poesia se comunica com as coisas da natureza, nos transmitindo emoções através da palavra-poética ao mesmo instante que nos leva à reflexão para o “ser” de ser da criança em sua pureza e singularidade, explorando todos os sentidos naquilo que se pode ver, ouvir e sentir.

Por que o tema?

Nada mais além de um simples encantamento pela palavra: da palavra escrita,  não somente como função do dizer, mas do sentir; da palavra como força no poema e pela capacidade de fecundar sonhos e devaneios; da palavra como construtora de símbolos e de imagens expressivas. Assim é o livro, Exercícios de Ser Criança. Nesta obra o autor coloca em relevo uma riqueza de formas e conteúdos e, simultaneamente, aproxima a inventividade polissêmica de um processo de arrebatamento da língua literária através da poesia com suas rimas, ritmos, sonoridades e ressonâncias, despertando em cada leitor, adulto ou criança, seus múltiplos sentidos para além da fantasia, aflorando a percepção sensorial e a sensibilidade, onde o som das palavras, com sua doce melodia, nos conduz ao inimaginável.   Ler Manoel de Barros é revisitar a nossa criança interna, é possibilitar um retorno à infância, matriz da  inocência, onde repousa o imaginário de cada ser humano ou, ainda, um convite para fazer emergir o melhor que há em cada um de nós. Lembrando o que disse Antonio Cândido: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”[1]


E, na palavra do poeta, um pouco de poesia:

No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.


A mãe teve ternuras e pensou: / Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Quero afirmar que sim. As palavras  da poesia de Manoel de Barros atravessam o tempo e o imaginário da escrita e nos envolvem no enlevo palatal de cada verso; e em cada verso, uma imagem além do retorno às lembranças da infância. Acredito nas  palavras que transformam e tocam o sensível como na expressão do afeto maternal: “A mãe teve ternuras” (...) Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que de bom senso?”.  E desse modo, o verso faz seu avesso, faz até a palavra fazer  peraltagens: “O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. (...) Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase.
 E o que falar da palavra..., ela constrói mas também destrói, cria  pontes invisíveis com  letras feitas de som; letras feitas de imagens e, com palavras simbólicas enfeita-se o universo daqueles que se rendem à poesia.
E a poesia conta história, realiza sentidos, cumpre seu dever social: anuncia ou denuncia fatos, aglutina multidões e basta deixar a palavra falar, pois a leitura trabalha no silêncio do discurso fielmente, conduzindo-nos a um viajar pelas entrelinhas do verso. Nas palavras da poesia de Manoel de Barros até um vento pode ser roubado: “A mãe disse/ que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. Nesse sentido de movimento, o poema mostra leveza no sabor dos dribles reais, subordinação de uma reinvenção que atravessa a palavra para dar forma e asas ao corpo da poesia.   E, é desse modo, que se seguem as palavras: ora vestindo a imagem e ora oferecendo sopro e alma aos conteúdos da ação dos poemas.

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
Que carregava água na peneira.
A mãe disse
Que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair
Correndo com ele para mostrar aos irmãos.


As palavras cumprem seu papel – O menino que carregava água na peneira e A menina avoada –  nos fazem mergulhar  no imaginário infantil e, ao mesmo tempo, nos revelar todo um lirismo que está por trás daquilo que podemos dizer ser a inocência que cabe na poesia.  E é com essa inocência colorida de lembranças da infância que o escritor tinge as palavras e as torna mais ricas em sua travessia através da linguagem poética.

Para reafirmar o exercício da escrita, trago à tona as palavras de Marguerite Duras: Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca.[2] A função do escriba se abre em possibilidades como produto de linguagem, sobretudo, como reflexão da criação literária, resultado e testemunho de um processo social como porta-voz de cultura. Como afirma o autor Manoel de Barros “ É preciso transver o mundo. A razão nos descompleta.” (do livro Sobre o Nada)

A literatura é uma arte que se revela nas coisas vistas, sabidas ou intuídas, além de apresentar encantamentos ela é representação de múltiplas faces do cotidiano. Os discursos literários se manifestam como estratégias de possibilidades e de experiências que podem ser apreendidos através da prática da leitura e essa é uma das funções de grande relevância e mais representativa da sociedade. Através da leitura o homem se reconhece no mundo, amplia seu dever de cidadão, concebe os bons exemplos de ética,  não só pela função de ler mas também no ato de escrever. Escrever denota compromissos, sobretudo, pelo cumprimento do dever social que o intelectual assume com a sociedade. Diante dessa concepção, o escritor procura desempenhar tal responsabilidade de “ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para um público.”[3]


Amigos leitores, eu li Exercícios de Ser Criança e me permiti viajar na fantasia de ser feliz com poesias, porque gosto das palavras. E A única palavra que me devora é aquela que meu coração não diz[4].





[1] CANDIDO, Antonio. A Educação pela Noite. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006.

[2] DURAS, Marguerite. Escrever. Tradução de Rubens Figueiredo, Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
[3] SAID, Edward W. Representações do intelectual: As Conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum, São Paulo, Companhia das Letras, s.d.
[4] Sueli Costa e Abel silva, “Jura Secreta”