A
inocência poética nas palavras:“Exercícios de ser Criança” de Manoel de Barros
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E
começou a fazer peraltagens.Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase.Foi capaz de
modificar a tarde botando uma chuva nela.
Manoel de
Barros
O Exercício de Ser Criança de Manoel de
Barros apresenta poemas narrativos que contam duas histórias: "O menino que carregava água na
peneira" e "A menina avoada".
O livro tem como introdução para essas duas histórias um poema que trata do
absurdo e dos despropósitos como matéria própria da poesia. Exercício de ser Criança deve ser lido
por qualquer indivíduo e em todas as idades, “um exercício de metalinguagem”
onde a poesia se comunica com as coisas da natureza, nos transmitindo emoções
através da palavra-poética ao mesmo instante que nos leva à reflexão para o
“ser” de ser da criança em sua pureza e singularidade, explorando todos os
sentidos naquilo que se pode ver, ouvir e sentir.
Por que o
tema?
Nada mais além
de um simples encantamento pela palavra:
da palavra escrita, não somente como
função do dizer, mas do sentir; da palavra como força no poema e
pela capacidade de fecundar sonhos e devaneios; da palavra como construtora de
símbolos e de imagens expressivas. Assim é o livro, Exercícios de Ser Criança. Nesta obra o autor coloca em relevo uma riqueza de formas e conteúdos e, simultaneamente,
aproxima a inventividade polissêmica de um processo de arrebatamento da língua
literária através da poesia com suas rimas, ritmos, sonoridades e ressonâncias,
despertando em cada leitor, adulto ou criança, seus múltiplos sentidos para
além da fantasia, aflorando a percepção sensorial e a sensibilidade, onde o som
das palavras, com sua doce melodia, nos conduz ao inimaginável. Ler Manoel de Barros é revisitar a nossa
criança interna, é possibilitar um retorno à infância, matriz da inocência, onde repousa o imaginário de cada
ser humano ou, ainda, um convite para fazer emergir o melhor que há em cada um
de nós. Lembrando o que disse Antonio Cândido: “A literatura desenvolve em nós
a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos
para a natureza, a sociedade, o semelhante.”[1]
E, na palavra
do poeta, um pouco de poesia:
No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da
poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende
com as crianças.
E ficou sendo.
A mãe teve ternuras e pensou: / Será que os absurdos
não são as maiores virtudes da poesia? Quero afirmar que sim. As palavras da poesia de Manoel de Barros atravessam o
tempo e o imaginário da escrita e nos envolvem no enlevo palatal de cada verso;
e em cada verso, uma imagem além do retorno às lembranças da infância. Acredito
nas palavras
que transformam e tocam o sensível como na expressão do afeto maternal: “A mãe
teve ternuras” (...) Será que os despropósitos não são mais carregados de
poesia do que de bom senso?”. E desse
modo, o verso faz seu avesso, faz até a palavra fazer peraltagens:
“O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. (...) Foi capaz de interromper
o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase.
E
o que falar da palavra..., ela constrói
mas também destrói, cria pontes invisíveis com letras feitas de som; letras feitas de
imagens e, com palavras simbólicas enfeita-se o universo daqueles que se rendem
à poesia.
E a poesia conta
história, realiza sentidos, cumpre seu dever social: anuncia ou denuncia fatos,
aglutina multidões e basta deixar a palavra falar, pois a leitura trabalha no
silêncio do discurso fielmente, conduzindo-nos a um viajar pelas entrelinhas do
verso. Nas palavras da poesia de Manoel
de Barros até um vento pode ser roubado: “A
mãe disse/ que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos. Nesse sentido de movimento, o
poema mostra leveza no sabor dos dribles reais, subordinação de uma reinvenção
que atravessa a palavra para dar forma e asas ao corpo da poesia. E, é desse modo, que se seguem as palavras: ora vestindo a imagem e ora
oferecendo sopro e alma aos conteúdos da ação dos poemas.
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
Que carregava água na peneira.
A mãe disse
Que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair
Correndo com ele para mostrar aos irmãos.
As palavras
cumprem seu papel – O menino que
carregava água na peneira e A menina avoada – nos fazem mergulhar no imaginário infantil e, ao mesmo tempo, nos
revelar todo um lirismo que está por trás daquilo que podemos dizer ser a
inocência que cabe na poesia. E é com
essa inocência colorida de lembranças da infância que o escritor tinge as
palavras e as torna mais ricas em sua travessia através da linguagem poética.
Para reafirmar
o exercício da escrita, trago à tona as palavras de Marguerite Duras: Escrever, essa foi a única coisa que habitou
minha vida e a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca.[2] A
função do escriba se abre em possibilidades como produto de linguagem,
sobretudo, como reflexão da criação literária, resultado e testemunho de um
processo social como porta-voz de cultura. Como afirma o autor Manoel de Barros
“ É preciso transver o mundo. A razão nos
descompleta.” (do livro Sobre o Nada)
A literatura é
uma arte que se revela nas coisas vistas, sabidas ou intuídas, além de
apresentar encantamentos ela é representação de múltiplas faces do cotidiano. Os
discursos literários se manifestam como estratégias de possibilidades e de experiências
que podem ser apreendidos através da prática da leitura e essa é uma das
funções de grande relevância e mais representativa da sociedade. Através da
leitura o homem se reconhece no mundo, amplia seu dever de cidadão, concebe os
bons exemplos de ética, não só pela
função de ler mas também no ato de escrever. Escrever denota compromissos, sobretudo,
pelo cumprimento do dever social que o intelectual assume com a sociedade.
Diante dessa concepção, o escritor procura desempenhar tal responsabilidade de “ser
um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma
mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para um público.”[3]
Amigos
leitores, eu li Exercícios de Ser Criança
e me permiti viajar na fantasia de ser feliz com poesias, porque gosto das
palavras. E A única palavra que me devora
é aquela que meu coração não diz[4].
[1] CANDIDO, Antonio. A Educação pela Noite. Rio de
Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006.
[2] DURAS,
Marguerite. Escrever. Tradução de Rubens Figueiredo, Rio de Janeiro, Rocco,
1994.
[3] SAID,
Edward W. Representações do intelectual: As Conferências Reith de 1993.
Tradução de Milton Hatoum, São Paulo, Companhia das Letras, s.d.
[4] Sueli
Costa e Abel silva, “Jura Secreta”