“O poema quer o Outro,
precisa desse Outro, precisa de um parceiro. Ele o procura, adéqua-se a ele.
Cada coisa, cada pessoa é um poema que se dirige ao Outro, figura desse Outro.”
(Paul Celan)
Inicio um
discurso íntimo enredada no infinito do meu eu. Escrevo como quem necessita do
ar para viver. Escrevo, como quem toma um antídoto para uma dor qualquer e não para
ser lida na face de um frio papel. Escrevo ao destino os mais enlouquecidos desatinos
e, não mais, como uma mensagem que se destina a ser decifrada por um ser
desavisado. Escrevo a dor. Se é que é possível descrevê-la – essa alodinia de
poeta. Por isso, escrevo sentimentos, como produto da alma. Escrevo como resultado
da fala silenciada. Escrevo o grito amordaçado de mil afetos. Escrevo afetos de
infinitos íntimos. Escrevo afetada pela falta de afeto que afeta o dizer das
relações nas suas formas do não dizer. Escrevo o dizer que, às vezes, nada diz
do que deveria dizer. Escrevo.
Escrevo como quem sangra, acreditando na vida
que pulsa nas veias onde circula a força viva da palavra. Escrevo como quem
sangra na fala que faísca gemidos do miocárdio da alma. Escrevo como se fosse
um surdo que nada pode ouvir daquilo que foi negligenciado aos sentidos
neurosensores. Escrevo o Não de um silêncio não interpretado de uma fala que
apenas fala para um Outro que, também, não fala nem ouve. Escrevo a sintaxe
desmesurada no glamour da sínquise, desconstruindo a expressão no rastro
rítmico daquilo que é excessivo. Escrevo a falta da fala, aquela que nem sabe que por sua falta, a fala cala.
Escrevo o fluir de um exercício de fruição de poder que o ato tem e de fazer
valer o poder do sim, ao mesmo instante, que se faz valer o poder do não, como
força do fracasso. Escrevo a ausência do plasma
que silencia no corpo e nas profundezas da alma a dor da palavra
extirpada do Outro que não é um outro
sem mim. E, sim, um Outro plasmado da mesma essência, célula e sangue de
existência.
Escrevo para esse
Outro que vive em mim. Escrevo como quem respira em busca do ar para viver e aspiro
ao nada a que a ele se impõe como
àquilo que dá à vida o direito de não pode romper o ritmo. Escrevo para tingir o
impossível de se ver no claro-opaco pano
de fundo. Escrevo, no escuro palco das incertezas, cenas poderosas que se
evadem como metáforas de si mesmas. Escrevo histórias de seres sem voz e sem olhos,
oferecendo ao Outro risadas ressecadas. Escrevo a escada da palavra nos degraus
da etimologia para alcançar o cerne do poema. Escrevo, pois, para esse Outro que
se oculta em meu ser e penso ser dele o
olhar que vejo em mim. Escrevo a existência desse Outro que não se extingue de
mim, por mais que de mim se ausente ou fuja.
Escrevo para esse Outro pedaço clivado de mim
e que, por isso mesmo calo, por que já
não é mais preciso falar – ele é parte forte,
é ferida e é clivagem. E se ainda necessito
dessa fala, é porque a poesia não silencia na lágrima que cai invertida e o que dela, não
me isenta enquanto escrevo, transforma-se naquilo que não se vê, não se sabe nem
o quê e o que está para nascer ao se escrever. Por isso, escrevo o que se pode
sentir de qualquer mal-estar; por isso, escrevo todo bem que a vida dá. Por
isso escrevo a força da fala prisioneira perpétua no labirinto subterrâneo. Escrevo
com as mesmas palavras o sonho escondido no interior da palavra. Escrevo o que
nunca talvez seja lido e que jamais será um escrito de leituras de letras sem
sentidos. Escrevo a alegria de ser o que isso possa vir a ser. Escrevo o
contentamento que a palavra contém. Escrevo sem querer causar a esse Outro que
vive em mim, um espanto; pois ele vive quando palavreia, e vive quando deixa a
poesia falar por mim.