A mala da madrugada.
Teoricamente,
todo conto tem seu começo, meio e fim e este conto inicia-se pelo fim. Pois bem: depois de uma semana de trabalho
numa cidadezinha de Goiás chamada Buriti Alegre, enfrentei momentos de
verdadeira angústia. E devo confessar
que foram esses percalços os incidentes que me levaram a uma breve reflexão
sobre o nome da cidade descrita acima. Tais incidentes levaram-me a um pequeno
questionamento: por que certas coisas acontecem? E qual será a causa do
mistério que às vezes gira em torno delas? E se isso merece uma investigação,
não sei. A verdade é que existem as incidências e estas poderão ser apenas
meras recorrências de fatos e acontecimentos comuns, o que não afirma, tão
pouco descarta, o acaso da correspondência do nome do lugar com as coisas que
ali podem, de fato, acontecer.
O acontecimento
Fecho a conta do Hotel, pego a
bagagem de mão e deixo as malas para que o vigia as coloque do lado de fora do Hotel, na
calçada, enquanto aguardava-se o táxi. A madrugada está fria... Do lado de dentro, o vigia volta a
debruçar-se sobre o balcão. Parece dormir com a cabeça enfiada sobre os braços
entrecruzados. Do lado de fora, em pé e sem ter onde encostar, a não ser num
poste sem luz, estou eu aguardando pacientemente a chegada do veículo que me
levaria à Rodoviária. O trajeto é pequeno, porém não dá para ser feito a pé,
principalmente quando se tem bagagens de peso para carregar. Ah que bom, chegou
o táxi. E, dentro dele, aboletei-me imediatamente: primeiro, para também fugir
do frio e, segundo, para descansar meus pés de uma semana árdua de trabalho
“nos saltos”. Sem outras preocupações, deixei o embarque da bagagem, duas
malas, ao encargo do motorista.
O
trajeto para a Rodoviária
Ao adentrar o
táxi, um gostoso alívio. Poder sentar... que delícia! Essas foram as maiores
sensações de bem estar que pude vivenciar naquela semana. O abrigo e o calor no
interior do carro em contraste com a vasta e fria madrugada representavam a recompensa pelo estresse
sofrido. Quebrei o silêncio com um bom dia senhor! Leve-me para a Rodoviária,
vou pegar o ônibus das duas horas e meia da manhã com destino à Goiânia.
Chegada
à Rodoviária
Abro a bolsa e
retiro dela uma nota de cinquenta reais
para pagar a corrida que custara apenas dez reais. O motorista diz não ter
troco e que eu pague um outro dia. Respondo rindo que não sei se haveria outro
dia. E ele, placidamente, diz: não tem problema, se a senhora voltar... a
senhora me procura, meu nome é Tonho. Igualzinho no Rio de Janeiro... pensei em
tom de ironia. Enquanto o motorista se incumbe de retirar as malas do carro,
faço uma inspeção cautelosa na bolsa, reviro-a pelo avesso e fico feliz por
encontrar uma nota de dez reais perdida em meio aos muitos papéis soltos no
fundo dela. Após ter pago, o senhor Tonho me deseja uma boa viagem e eu
agradeço já em
movimento. Imediatamente corro à bilheteria para confirmar o
embarque e a hora de saída do ônibus.
A
surpresa
Antes mesmo de chegar à bilheteria, dei por
falta de uma das malas. Foi aí, nesse instante, que percebi que estava me
faltando uma mala; eu carregava duas malas grandes e duas bolsas de mão. Olho
em direção ao desembarque à procura do táxi que havia me deixado na rodoviária
e já não o vejo mais... O senhor Tonho? Já partiu! E o que fazer agora?
O desespero
Aproxima-se um
carro particular com um casal no seu interior. Foi então, que não vislumbrando
outra saída, pedi ajuda: oi amigos estou em desespero, será possível levar-me
até o Hotel? Justifiquei o esquecimento de uma das malas e que talvez a tivesse
deixado no quarto. O casal extremamente solícito e educado disse: vamos lá! A
companheira do condutor do veículo, uma moça bastante simpática, sugeriu que eu
guardasse a outra mala no próprio guichê da empresa. Assim o fiz.
O retorno ao Hotel
Olá! Deixei uma mala aqui. Você pode pegá-la, por
favor, deve ter ficado lá no quarto. O rapaz foi categórico na resposta: lá, não ficou nada não, eu trouxe as duas
malas da senhora cá pra baixo. Estranho... disse eu; então, o que
aconteceu? O funcionário, tentando ser gentil, argumenta: será que ficô no táxi? Vou ligar pro seu
Tonho. E o rapaz liga imediatamente para o dono do táxi.
A conversa do
atendente do Hotel com o motorista
Seu Tonho,
aquela muié que o sinhô pegou
aqui inda gorinha... que o sinhô levou pra rodô... sinhô tá lembrado dela? Pois
é... a muié perdeu a mala e qué sabê se
ficô no carro do sinhô. Do outro lado a resposta é repassada ao vigia do
Hotel. Sem pestanejar o rapaz afirma: seu Tonho
disse que só tinha uma mala e ele só
tirô uma do carro dele.
A
dúvida e o retorno para a Rodoviária
A madrugada já
estava ficando pequena e a hora do embarque também. Por essa eu não esperava...
Aquele transtorno inaugurava além de dúvidas, uma certa desolação. Olhei aflita
para os ponteiros do relógio que mais pareciam estar desgovernados, correndo em
disparada contra o tempo. Pensei alto, tenho de voltar o mais rápido possível
para a rodoviária, senão vou acabar perdendo o ônibus. Jakson e a companheira
que me prestaram ajuda naquele momento de aflição (lembra do carro particular
com um casal dentro?) ficaram sensibilizados com a minha situação: temos mesmo
de correr para a Rodoviária, sua mala deve ter ficado lá em algum lugarzinho,
quem sabe?. E eu respondi: quem sabe! Cheguei ofegante. O coração batendo em
ritmos descompassados, querendo sair pela boca. E os pés... Nesse instante, um
dos meus sapatos quebra o salto... tentei manter o equilíbrio, quase impossível.
Mas isso não está me importando agora. Quero mesmo é ir embora. Com ou sem
mala, com salto ou sem. O problema maior seria
a mala e o que nela contém. Mas já que ela desapareceu, sacudi o ombro,
coloquei em prumo o peito e disse: o jeito é me conformar. Ainda assim, procurei sem esperanças, com os
olhos voltados para cada palmo de chão como quem procura uma agulha num
palheiro, e nada de mala. A bandida
havia realmente desaparecido como por encanto. Indaguei a todos os funcionários
que estavam de trabalho naquela madrugada na rodoviária e eram apenas dois: um
executava o serviço de vendedor de bilhetes, enquanto o outro conferia a
chegada e saída dos Ônibus; este último, ao mesmo tempo que colocava as
bagagens dos passageiros no seu devido lugar, também era quem, com uma
prancheta na mão, anunciaria a hora da
partida dos coletivos.
O
espaço físico da Rodoviária
Naquela
manhã havia pouquíssimos passageiros
para o embarque daquele dia. Era menos de meia dúzia o contingente de
viajantes. O espaço físico da Rodoviária oferecia aos olhos de qualquer
observador, não menos atento, um olhar mais que devassador: bastava uma pequena
passada de olhos para que tudo fosse visto no mesmo instante. Diante daquela
estrutura arquitetônica da Rodoviária, não era estranho perceber, em poucos segundos o entorno de tudo
que ali existia: um pequeno corredor separava o bar das duas pequenas
bilheterias das diferentes empresas, sendo que só uma funcionava. Esse mesmo
corredor desemboca em um outro menor ainda e aponta para duas placas em preto e
branco, sinalizando os gêneros dos dois banheiros também pequenos e sujos. Na entrada desse lugar, ao qual atribuímos o
nome de Rodoviária, havia uma pista destinada para o estacionamento dos
coletivos com uma demarcação de lugares (uma espécie de Box) para apenas dois
ônibus. Do lado oposto dessa mesma pista, podiam parar carros particulares,
assim como táxis.
Onde foi parar a mala?
E a mala? Nada. Onde ela foi parar nessa hora? O que teria acontecido com aquela mala? Fiquei
pasma... muito estranho... pensei desolada. A mala havia desaparecido sem
deixar vestígio. Nesse instante de reflexão, chega o ônibus. Inicia-se, então,
o embarque. Ainda desencantada, dirigi‑me ao rapaz do embarque de cargas, a fim
de entregar-lhe o que restara da minha bagagem. Antes mesmo de me dar a devida atenção,
ele faz uma chamada aos poucos passageiros que ali embarcariam.
O aviso surpreendente
Senhores, senhores, por favor,
tenho um aviso importante! Pensei comigo: só me falta essa agora, ele
vai anunciar que o ônibus está quebrado. De repente a chamada: onde está a mulher que perdeu a mala? onde
está a mulher que perdeu a mala? Minha voz embargou. Só na segunda
repetição pude me dar conta de que era para mim aquele aviso. Mancando, corri
até o rapaz e disse: sou eu... - E o tal rapaz informa: Um funcionário do Hotel cercou o nosso coletivo e nos pediu que
procurássemos a mulher que perdeu a mala, dizendo que esta estava no mesmo
lugar, do lado de fora do Hotel, encostadinha no poste onde o táxi parou pra
pegar a senhora. Fiquei por algum tempo sem palavras de tão alegre.
O silêncio em forma de regozijo
Depois de um longo silêncio, veio a reflexão e
uma retrospectiva de toda aquela cena e, ao mesmo tempo, a do abandono da mala
naquele lugar, naquela hora da noite, ao lado de um poste de lâmpada queimada,
o qual nem sequer sabia que não cumpria o seu ideal papel. E, para acrescentar
mais um enredo a esta história, a porta do Hotel, como de costume, ficava
sempre trancada a chaves e o poste sem luz, lá do lado de fora, fora do alcance da visão de quem estivesse
no interior do Hotel. Aí eu me pergunto: como foi que o vigia avistou a mala?
Realmente, não sei como, mas a mala estava lá... esperando o momento de retomar
para sua jornada de tantas idas e vindas e de volta a sua dona.
Analogias e antíteses: um fenômeno
Minha estada em Buriti Alegre fez
jus ao nome: trouxe-me a certeza do termo “alegre” e bem de acordo com sua etimologia. Porém,
durante alguns minutos, uma eternidade vivenciada por uma angústia, quase
quebra o sabor da palavra “alegre”. Mas esta mesma duração de tempo trouxe-me à
reflexão e de novo a palavra alegre
se apresenta a mim naquele instante envolvendo-me de certezas e de uma
indescritível constatação de alegria, quase indefinível. Juntamente com essa
sensação de bem estar e de alegria pelo resultado do encontro com a mala já
considerada perdida, instaurou-se um fenômeno: por aqui ainda mora a
honestidade e juntamente com ela o ser Alegrense. Mas será que todos que por
aqui vivem tem pelo menos um motivo para justificar o nome de sua pequena
cidade?
Conclusão
Minha ida a Buriti Alegre para
ministrar um curso de pós-graduação, trouxe-me um belo aprendizado: descobri
que lá ainda reina a honestidade em todas as classes humanas. Trouxe comigo a
mala desgarrada e nela a certeza de ter vivenciado uma experiência fantástica.
Esta é uma história com causa e consequência de um acontecimento real com final feliz.