domingo, 23 de julho de 2017

A Mala da Madrugada

A  mala da madrugada.

Teoricamente, todo conto tem seu começo, meio e fim e este conto inicia-se pelo fim.  Pois bem: depois de uma semana de trabalho numa cidadezinha de Goiás chamada Buriti Alegre, enfrentei momentos de verdadeira angústia.  E devo confessar que foram esses percalços os incidentes que me levaram a uma breve reflexão sobre o nome da cidade descrita acima. Tais incidentes levaram-me a um pequeno questionamento: por que certas coisas acontecem? E qual será a causa do mistério que às vezes gira em torno delas? E se isso merece uma investigação, não sei. A verdade é que existem as incidências e estas poderão ser apenas meras recorrências de fatos e acontecimentos comuns, o que não afirma, tão pouco descarta, o acaso da correspondência do nome do lugar com as coisas que ali podem, de fato, acontecer.

 O acontecimento 

Fecho a conta do Hotel, pego a bagagem de mão e deixo as malas para que o vigia  as coloque do lado de fora do Hotel, na calçada, enquanto aguardava-se o táxi. A madrugada está fria...  Do lado de dentro, o vigia volta a debruçar-se sobre o balcão. Parece dormir com a cabeça enfiada sobre os braços entrecruzados. Do lado de fora, em pé e sem ter onde encostar, a não ser num poste sem luz, estou eu aguardando pacientemente a chegada do veículo que me levaria à Rodoviária. O trajeto é pequeno, porém não dá para ser feito a pé, principalmente quando se tem bagagens de peso para carregar. Ah que bom, chegou o táxi. E, dentro dele, aboletei-me imediatamente: primeiro, para também fugir do frio e, segundo, para descansar meus pés de uma semana árdua de trabalho “nos saltos”. Sem outras preocupações, deixei o embarque da bagagem, duas malas, ao encargo do motorista.

 O trajeto para a Rodoviária

 Ao adentrar o táxi, um gostoso alívio. Poder sentar... que delícia! Essas foram as maiores sensações de bem estar que pude vivenciar naquela semana. O abrigo e o calor no interior do carro em contraste com a vasta e fria madrugada  representavam a recompensa pelo estresse sofrido. Quebrei o silêncio com um bom dia senhor! Leve-me para a Rodoviária, vou pegar o ônibus das duas horas e meia da manhã com destino à Goiânia.

 Chegada à Rodoviária

Abro a bolsa e retiro dela uma nota  de cinquenta reais para pagar a corrida que custara apenas dez reais. O motorista diz não ter troco e que eu pague um outro dia. Respondo rindo que não sei se haveria outro dia. E ele, placidamente, diz: não tem problema, se a senhora voltar... a senhora me procura, meu nome é Tonho. Igualzinho no Rio de Janeiro... pensei em tom de ironia. Enquanto o motorista se incumbe de retirar as malas do carro, faço uma inspeção cautelosa na bolsa, reviro-a pelo avesso e fico feliz por encontrar uma nota de dez reais perdida em meio aos muitos papéis soltos no fundo dela. Após ter pago, o senhor Tonho me deseja uma boa viagem e eu agradeço já em movimento. Imediatamente corro à bilheteria para confirmar o embarque e a hora de saída do ônibus.

 A surpresa

  Antes mesmo de chegar à bilheteria, dei por falta de uma das malas. Foi aí, nesse instante, que percebi que estava me faltando uma mala; eu carregava duas malas grandes e duas bolsas de mão. Olho em direção ao desembarque à procura do táxi que havia me deixado na rodoviária e já não o vejo mais... O senhor Tonho? Já partiu! E o que fazer agora?

O desespero

 Aproxima-se um carro particular com um casal no seu interior. Foi então, que não vislumbrando outra saída, pedi ajuda: oi amigos estou em desespero, será possível levar-me até o Hotel? Justifiquei o esquecimento de uma das malas e que talvez a tivesse deixado no quarto. O casal extremamente solícito e educado disse: vamos lá! A companheira do condutor do veículo, uma moça bastante simpática, sugeriu que eu guardasse a outra mala no próprio guichê da empresa. Assim o fiz.

  O retorno ao Hotel

Olá!  Deixei uma mala aqui. Você pode pegá-la, por favor, deve ter ficado lá no quarto. O rapaz foi categórico na resposta:  lá, não ficou nada não, eu trouxe as duas malas da senhora cá pra baixo. Estranho... disse eu; então, o que aconteceu? O funcionário, tentando ser gentil, argumenta: será que ficô no táxi? Vou ligar pro seu Tonho. E o rapaz liga imediatamente para o dono do táxi.

 A conversa do atendente do Hotel com o motorista

 Seu Tonho,  aquela  muié que o sinhô pegou aqui inda gorinha... que o sinhô levou pra rodô... sinhô tá lembrado dela? Pois é... a muié perdeu a mala  e qué sabê se ficô no carro do sinhô. Do outro lado a resposta é repassada ao vigia do Hotel.   Sem pestanejar o rapaz afirma: seu Tonho  disse que só tinha uma mala e ele só  tirô uma do carro dele.

 A dúvida e o retorno para a Rodoviária

 A madrugada já estava ficando pequena e a hora do embarque também. Por essa eu não esperava... Aquele transtorno inaugurava além de dúvidas, uma certa desolação. Olhei aflita para os ponteiros do relógio que mais pareciam estar desgovernados, correndo em disparada contra o tempo. Pensei alto, tenho de voltar o mais rápido possível para a rodoviária, senão vou acabar perdendo o ônibus. Jakson e a companheira que me prestaram ajuda naquele momento de aflição (lembra do carro particular com um casal dentro?) ficaram sensibilizados com a minha situação: temos mesmo de correr para a Rodoviária, sua mala deve ter ficado lá em algum lugarzinho, quem sabe?. E eu respondi: quem sabe! Cheguei ofegante. O coração batendo em ritmos descompassados, querendo sair pela boca. E os pés... Nesse instante, um dos meus sapatos quebra o salto... tentei manter o equilíbrio, quase impossível. Mas isso não está me importando agora. Quero mesmo é ir embora. Com ou sem mala, com salto ou sem. O problema maior seria  a mala e o que nela contém. Mas já que ela desapareceu, sacudi o ombro, coloquei em prumo o peito e disse: o jeito é me conformar.  Ainda assim, procurei sem esperanças, com os olhos voltados para cada palmo de chão como quem procura uma agulha num palheiro, e nada de mala.  A bandida havia realmente desaparecido como por encanto. Indaguei a todos os funcionários que estavam de trabalho naquela madrugada na rodoviária e eram apenas dois: um executava o serviço de vendedor de bilhetes, enquanto o outro conferia a chegada e saída dos Ônibus; este último, ao mesmo tempo que colocava as bagagens dos passageiros no seu devido lugar, também era quem, com uma prancheta na mão, anunciaria  a hora da partida  dos coletivos.

  O espaço físico da Rodoviária

 Naquela manhã  havia pouquíssimos passageiros para o embarque daquele dia. Era menos de meia dúzia o contingente de viajantes. O espaço físico da Rodoviária oferecia aos olhos de qualquer observador, não menos atento, um olhar mais que devassador: bastava uma pequena passada de olhos para que tudo fosse visto no mesmo instante. Diante daquela estrutura arquitetônica da Rodoviária, não era estranho  perceber, em poucos segundos o entorno de tudo que ali existia: um pequeno corredor separava o bar das duas pequenas bilheterias das diferentes empresas, sendo que só uma funcionava. Esse mesmo corredor desemboca em um outro menor ainda e aponta para duas placas em preto e branco, sinalizando os gêneros dos dois banheiros também pequenos e sujos.  Na entrada desse lugar, ao qual atribuímos o nome de Rodoviária, havia uma pista destinada para o estacionamento dos coletivos com uma demarcação de lugares (uma espécie de Box) para apenas dois ônibus. Do lado oposto dessa mesma pista, podiam parar carros particulares, assim como  táxis.


Onde foi parar a mala?

E a mala? Nada.  Onde ela foi parar nessa hora?   O que teria acontecido com aquela mala? Fiquei pasma... muito estranho... pensei desolada. A mala havia desaparecido sem deixar vestígio. Nesse instante de reflexão, chega o ônibus. Inicia-se, então, o embarque. Ainda desencantada, dirigi‑me ao rapaz do embarque de cargas, a fim de entregar-lhe o que restara da minha bagagem. Antes mesmo de me dar a devida atenção, ele faz uma chamada aos poucos passageiros que ali embarcariam.

O aviso surpreendente

 Senhores, senhores, por favor, tenho um aviso importante! Pensei comigo: só me falta essa agora, ele vai anunciar que o ônibus está quebrado. De repente a chamada: onde está a mulher que perdeu a mala? onde está a mulher que perdeu a mala? Minha voz embargou. Só na segunda repetição pude me dar conta de que era para mim aquele aviso. Mancando, corri até o rapaz e disse: sou eu... - E o tal rapaz informa: Um funcionário do Hotel cercou o nosso coletivo e nos pediu que procurássemos a mulher que perdeu a mala, dizendo que esta estava no mesmo lugar, do lado de fora do Hotel, encostadinha no poste onde o táxi parou pra pegar a senhora. Fiquei  por algum tempo sem palavras de tão alegre.
  
O silêncio em forma de regozijo

 Depois de um longo silêncio, veio a reflexão e uma retrospectiva de toda aquela cena e, ao mesmo tempo, a do abandono da mala naquele lugar, naquela hora da noite, ao lado de um poste de lâmpada queimada, o qual nem sequer sabia que não cumpria o seu ideal papel. E, para acrescentar mais um enredo a esta história, a porta do Hotel, como de costume, ficava sempre trancada a chaves e o poste sem luz, lá do lado de  fora, fora do alcance da visão de quem estivesse no interior do Hotel. Aí eu me pergunto: como foi que o vigia avistou a mala? Realmente, não sei como, mas a mala estava lá... esperando o momento de retomar para sua jornada de tantas idas e vindas e de volta a sua dona.

Analogias e antíteses: um fenômeno

Minha estada em Buriti Alegre fez jus ao nome: trouxe-me a certeza do termo “alegre”  e bem de acordo com sua etimologia. Porém, durante alguns minutos, uma eternidade vivenciada por uma angústia, quase quebra o sabor da palavra “alegre”. Mas esta mesma duração de tempo trouxe-me à reflexão e de novo a palavra alegre se apresenta a mim naquele instante envolvendo-me de certezas e de uma indescritível constatação de alegria, quase indefinível. Juntamente com essa sensação de bem estar e de alegria pelo resultado do encontro com a mala já considerada perdida, instaurou-se um fenômeno: por aqui ainda mora a honestidade e juntamente com ela o ser Alegrense. Mas será que todos que por aqui vivem tem pelo menos um motivo para justificar o nome de sua pequena cidade?

Conclusão

Minha ida a Buriti Alegre para ministrar um curso de pós-graduação, trouxe-me um belo aprendizado: descobri que lá ainda reina a honestidade em todas as classes humanas. Trouxe comigo a mala desgarrada e nela a certeza de ter vivenciado uma experiência fantástica. Esta é uma história com causa e consequência de um acontecimento  real com final feliz.