Por que gosto de ler e escrever?
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Outro dia, surpreendi-me
com uma inquietante pergunta sobre um vício que entrou na minha vida quando
era apenas uma criança de quatro anos de idade. O sintoma? Ansiedade por
leitura. Hoje, sete décadas depois, o tal vício perdura, porém um tantinho mais
ampliado, com algumas exigências psíquicas, por vezes bem específicas, dominando
toda a minha existência entre a leitura e a escrita. Diante desse dito, não
tenho dúvida de que valeram a pena o empenho e as broncas que recebia de
minha mãe pelas perguntas incomodativas que eram feitas todos os dias. Horário
sagrado, hora de dormir e hora também de ficar revendo as inscrições expostas nas
telhas da casa. Todas as noites a ação se repetia: eu queria saber o que estava
escrito ali.
Minha infância foi assim,
nutrida por momentos de arguições. O porquê de tudo era uma brincadeira do
processo de aprendizado da criança perguntadora que fui. E não tenho dúvida
quanto àqueles questionamentos perante as exauridas respostas da mãe, que iriam
fazer diferença ao longo da vida daquela menina curiosa que gostava de letras e
símbolos. A descoberta dos escritos no telhado da casa sofreram grandes
transformações e passaram de simples inscrições a um brinquedo viciante. A
rotina do início da noite também sofrera mudanças de hábitos, a casa que era
antes iluminada por um lampião a óleo deveria permanecer às escuras. Por que
motivo? Tirar dos olhos acesos da menina a brincadeira, pois preso ao tenro
olhar daquela criança estava o objeto do desejo de leitura, materializado em
anseios de conhecimento.
Pois bem, aqueles
símbolos, ao serem desvelados de seus mistérios, viraram história diante das
pertinentes indagações e se transmutaram em estímulo a cada resposta recebida
pela voz da mãe, ainda que embargada pelo extremo cansaço do dia. E esta era
uma forma indelével de brincar com palavras e letras que o crescimento futuro
exigia. Aquela menina que sequer podia imaginar, naquele instante, qual seria o
seu futuro, só queria saber mesmo o que estava escrito nas telhas; aquilo que
seus olhos viam quando deitada em sua cama. O olhar intrigado para o teto – tão
imensamente alto – refletia o paradoxo na antítese da voz pequena e frágil: mãe,
o que é que está escrito na telha? E a voz da mãe reverberava do outro cômodo
com incômodo: vai dormir, menina, eu tenho que descansar, já é tarde.
E assim, os dias
seguiram. Hoje, movida não mais pela curiosidade busco entender o passado ao
abrir a caixa preta das lembranças de criança, resgatando de lá o episódio de
indagação que deu origem ao meu processo de alfabetização. Brilhante início com
letras e símbolos. E aí está um corte no tempo em busca de verdades. A caixa
preta da infância estava mais preta do que se podia pensar. Para responder a
mim mesma, um flasch back pelos idos da infância se fez necessário, uma descida
aos porões da memória num vasculhar aquilo que ainda pudesse permanecer
preservado por lá – e, de lá, subtrair o imemorável do tempo, espanando a
poeira invisível – para tornar visível ao pensamento da escrita.
Então, vamos lá à
primeira pergunta: por que gosto ler? A resposta é simples: porque necessito
escrever. Não preciso dizer que há, mais ou menos, uns sessenta e cinco anos
atrás, certos recursos de comunicação não existiam. Portanto, na minha casa não
havia nenhum desses bens de comunicação, nem jornais, nem revistas, nem rádio
galena, quiçá outros meios. Pois bem, se não houve nenhum desses estímulos
externos – o que, de certo modo, sempre
influencia – então, posso supor que houve, realmente, uma ponte entre as letras
e as palavras das telhas.
Meu querido leitor,
você deve estar deduzindo que talvez tenham sido meus pais o incentivo à leitura,
supondo que eles deveriam ter uma biblioteca com muitos livros e que deveriam
ler belas histórias para seus filhos e, por essa razão, o prazer de ler estaria
implícito no hábito. Não. Não havia livros, leitor. Havia, sim, algumas
histórias assustadoras da oralidade e da linguagem popular. Você não acertou e
está longe de acertar. A contemplação das letras como símbolo gráfico, no teto
do casarão antigo, era a mais bela fantasia daquela época. Só depois de muito
tempo, admirando e observando aquelas inscrições, tentando desenhar para que
minha mãe pudesse decifrar o que nelas estaria escrito, só a partir daí,
surgiria a pergunta: mãe o que é que está escrito nas telhas?. E minha mãe
responderia com voz de sono, voz embargada de cansaço: vai dormir menina.
Pois bem, toda noite
era essa mesma agonia, uma ladainha. As letras estranhas me chamavam à atenção
e me seduziam. Com o passar dos dias, fui aprimorando as inscrições ao
desenha-las no papel de pão. Até que, de repente, as tais letrinhas foram sendo
uma espécie de cartilha onde cada letra ganhava uma forma e um som. Mas
estava longe de ser uma aula de alfabetização. Porém, a pertinácia da menina
acabava por converter sua mãe como sua professora. Mas a obstinação da criança
era bem maior que qualquer explicação que não a convencesse. Criança curiosa,
questionadora de tudo que desejasse saber. E foi assim que o vício alastrou-se
pela casa a fora: qualquer coisa escrita num pedaço de papel lhe bastava para
ser um motivo de grande inquietação.
Suponho que você agora,
leitor, também esteja curioso em saber o que é que estava escrito naquelas
telhas. Então, vamos às inscrições: Cerâmica Sylvio Guaraciaba – Paraíba do Sul
e Cerâmica D’Angelo, também de Paraíba do Sul. Havia uma data em todas, mas não
me recordo.
E agora vem a parte
mais significativa da primeira pergunta: aprendi a ler com as letras inscritas
nas telhas, nos saquinhos de açúcar Cristal e sal Cisne. Juntei letras e sons
como brinquedos e fiz delas o meu alfabeto particular, uma reunião que parecia
não ter muita lógica, mas arduamente eu buscava compreender, insistentemente, o
exercício daquela brincadeira. Todavia, tendo vencido a primeira fase dessa
infância, sem livros e sem outros recursos, perece que o resultado fora
positivo. Aí, os sons e as letras começavam a fazer ruídos em meus ouvidos e
uma traquinagem em meus sentidos. Um dia, surpreendi minha mãe com a leitura no
saco de açúcar Cristal e ela, cheia de dúvidas, parou e me mostrou um outro
saquinho de sal Cisne e eu, então, li corretamente. Naquele instante, eu já
estava lendo.
Agora vamos para a
segunda parte do tema: a escrita. Este é um marco significativo na história da
minha infância, histórias de vivências que se manifestavam no meio familiar e
de forma bem peculiar. Como já me referi anteriormente, vivi uma infância sem
livros, sem impressos, sem nenhum veículo que servisse de auxílio ao
aprendizado, a não ser, a contação de histórias esquisitas na oralidade de
minhas avós. Reflito hoje sobre aquele momento, naquele lugar distante de tudo
e vejo, claramente, que não há muito a refletir. Mas há, sim, muito a se
considerar na reconstrução do imaginário, do que ficou como lição de vida e o
que poderá ainda vir à tona como resgate de um tempo com suas fantasias de
árvores-mãe, árvores-casa, flores que falam e muito mais. O resgate dessa
vivência preservada na memória reflete como experiência. A ausência de livros
fez-me revisitar lembranças sobre aquele vazio de livros, realçando em mim uma
visão magnífica dos livros vivos que estiveram ali e seguiram comigo lado a
lado durante um longo tempo. Os livros vivos a que me refiro foram as minhas
avós e ambas eram detentoras de suas pedagogias empíricas, cada uma do seu
modo, com a sua bagagem própria, porém dotadas de uma parcela educativa na
formação do núcleo familiar, que possuíam como referência uma larga
criatividade no modo de contar as histórias. Hoje, tenho certeza de que aqueles
fatos narrados estão vivos na minha formação cultural como professora e
psicopedagoga.
Avós! Essas criaturas
incomuns, mágicas, transbordam ternuras... São elas deusas encantadoras no
ofício de enredar afetos e transferir experiências. É nessa relação dos netos
com os avós que as crianças aprendem a lidar com os sentimentos e a se
prepararem para relacionamentos futuros, valorizando a vida e enaltecendo o
amor. Assim são os avós e, principalmente, as avós – elas marcam o imaginário
de seus netos com suas ações de doçura infinitas – tal como uma poção mágica
onde a lembrança se eterniza em cada detalhe, em cada momento da infância,
fazendo desse lugar, um espaço único e especial do existir. E é nesse lugar do
passado recheado de aventuras ao lado de minhas avós, que pude viver o
transbordamento dos meus sentidos através das estranhas histórias inventadas –
histórias que deram vida aos sonhos que, supostamente, também foram por mim
imaginados – hoje, ampliam-se em experiências emocionais as quais vivencio como
reais depositários de valores morais adquiridos.
Por que gosto de
escrever? Para responder a esta pergunta, muito simples – volto-me para o apêndice
do que seria óbvio – porque gosto de ler. Enveredei no mundo da leitura e
gostei tanto que procurei fazer daquela oralidade, durante toda a minha
infância, uma prazerosa brincadeira. Esta narrativa dos motivos reais segue uma
etapa de estórias que são mais que histórias do cotidiano familiar – onde a
ficção e a fantasia perambulam como simples acessórios e ganham status de
realidade significantes – exercendo, assim, o poder de influenciar, contagiar,
incentivar e, de algum modo, seduzir aqueles leitores distraídos que por aqui
passarem.
A minha leitura devo ao
acaso. Eu a tomei como posse para o grande desejo de ler, tal como se fosse
tomada por uma invasão súbita que surgiu em minha vida aos quatro anos de idade
e que, do nada, ao olhar distraída àquelas telhas da casa, confesso que fiquei
completamente enfeitiçada. Talvez, devêssemos criar mais símbolos que possam
enfeitiçar outras crianças. É um fato: a escrita nos remete a uma submissão
depois de sermos abduzidos. Daí, outros hábitos entre o ler e o escrever podem
ser acometidos e virem a ser possíveis sintomas – a exemplo do vício de ler à
noite até altas madrugadas, tornando-se uma necessidade visceral: ler para
escrever; ler para viver e escrever; ler como vício pelo vício de escrever.
Escrever pelo encanto de letras e palavras.