Reflexão sobre o livro “A parte que
falta” de Shel Silverstain
Refletir
sobre a leitura de uma escrita é uma prática aparentemente muito simples para
os devoradores de bons livros. Porém, interpretar o conteúdo textual é uma
questão, sobretudo, literária e estilística. Mas o que poderíamos denominar de
ler uma pintura, um desenho abstrato, um rabisco
gráfico ou uma planta arquitetônica? É sabido que em cada livro esconde-se uma
história a ser apresentada para o leitor. Até aí, tudo nos parece ocupar um lugar comum.
Entretanto, para os mais ilustrados e de aguçados olhares, surge algo que salta
das entrelinhas do texto como um objeto de arte, ocupando o lugar da palavra (e
por querer falar) por outras vias, vai além de linhas imaginárias ao revelar
sentidos ocultos no dizer. Para tanto, não basta olhar. Há que refletir sobre a
obra enquanto arte. Há que se ir ao encalço dos muitos rastros demarcados pelo
pensamento do autor em cada obra – para lá, no interior da historia, levantar
as cortinas que embaçam a visão do leitor – e, então, penetrar no indizível.
Eis a leitura das entrelinhas: um
intrincado arcabouço de interpretação de
leitura acompanhada de traços que falam de pensamentos ocultos.
É desse modo que me debruço sobre o livro “A
parte que falta” do autor Shel Silverstain. Um livro infantil composto de
textos e desenhos com pinceladas de grandes metáforas. O traçado do desenho
apresenta-se através de um personagem como um grande “O”, onde a história tem
início. O clímax da narrativa atinge seu
momento crítico: encontrar a parte que falta. Para dominar a cena dessa jornada
à procura da parte que falta – o grande “O” segue rolando seu caminho sem cessar,
á procura da parte que falta – e encontra várias partes mas com tamanhos
diferentes ao de sua fenda até que, não por acaso, ele encontra uma parte que
dá o encaixe perfeito e ele estabelece um diálogo com a parte:
“Achei a parte que falta em mim”,
ele cantou.
“Achei a parte que faltava em mim,
asse o pudim, faça o quindim,
achei a parte...”
“Espere aí”, disse a parte.
“Antes que você asse o pudim
E faça o quindim...
Não sou a parte que te falta.
Não sou parte de ninguém.
Sou parte completa.
E ainda que eu fosse
A parte que falta em alguém,
Não acho que seria a sua!”
E o diálogo do grande O manifesta sua decepção
e continua rolando em busca da parte que lhe falta. Talvez, pudéssemos afirmar
que em cada um de nós existe essa falta concreta que achamos ser (ausência) de
uma outra parte (fora de nosso corpo) o que nos faz sentir tão incompletos. Ainda,
poderíamos recorrer a problemas emocionais e amorosos e atribuir uma falta
abstrata como causa de nossas frustrações. O autor Shel Silverstain aborda
através de uma linguagem simples o cotidiano emocional da existência humana,
relatando por meio do conto infantil as perspectivas desse novo olhar a realidade ao nos depararmos com as várias faces
de um todo imaginário. A linguagem desenvolvida pelo desenho gráfico impõe a
cena do diálogo – e esse diálogo, ultrapassa o imaginário infantil para ceder
lugar ao drama existencial – um recurso
semântico onde a metáfora cumpre sua função intencional.
Entretanto, cai sobre mim uma reflexão em “A
parte que Falta”: que tipo de leitor Silverstain quis alcançar? Terá sido apenas o público infantil? O autor
ousou despertar o imaginário da criança mas acertou o alvo pela metonímia da
“falta” – uma fatia do recorte temático, pode oferecer lugar para uma leitura
da vida – que se passa no cenário interior das emoções como constatação do
sintoma que se inscreve no outro.
Desse modo, fica um alerta aos professores:
permitir que haja em cada criança o seu infans
que ainda não se manifestou. O desenho
alcança a linguagem do olhar da criança e isto basta como proposta de leitura.
A fenda triangular posta no desenho do grande “O” pode ser entendida como uma
boquinha entreaberta que a leitura infantil dará como resposta. Pois bem,
literariamente, também há poesia nesse olhar do infans, a ideia de uma cara que rola em busca de uma parte que
falta pode sugerir outras possibilidades, desde que haja o incentivo para o
alargamento da discussão entre o professor e a sua turminha.
Ao concluir esta breve reflexão sobre o
livro "A parte que falta" gostaria de enfatizar a felicidade do autor
nessa grande temática: o diálogo é quase um jogo
pela busca, busca da vida e de ser feliz, de encontrar a outra parte que falta
naquilo que nos completaria como seres carentes; aquilo que nos complementa em
nossas ações psicológicas e físicas. Uma busca necessária – diária, pois quase sempre
em cada ser humano há essa espécie de “fenda” – essa parte da emoção que foge a
razão e que por isso mesmo nos deixa um vazio constante: uma busca pela parte
que falta a ser preenchida.
Portanto, rolar rumo ao futuro e ir em busca da parte que nos falta, eis o
grande jogo. Como definir a magnitude desse conflito andrógino numa abordagem,
aparentemente, tão inocente? O autor Shel Silverstain com poucas palavras
mapeou o que se esconde no interior do humano e o segredo de não ser “completo”
– continuar “rolando” é a proposta de vida na busca pela falta para sermos felizes.
A quem se se destina o livro “A parte
que falta”?