segunda-feira, 23 de abril de 2018

Reflexão sobre o livro "A parte que falta" de Shel Silverstain


Reflexão sobre o livro “A parte que falta” de Shel Silverstain




Refletir sobre a leitura de uma escrita é uma prática aparentemente muito simples para os devoradores de bons livros. Porém, interpretar o conteúdo textual é uma questão, sobretudo, literária e estilística. Mas o que poderíamos denominar de ler uma pintura, um desenho abstrato,  um rabisco gráfico ou uma planta arquitetônica? É sabido que em cada livro esconde-se uma história a ser apresentada para o leitor. Até aí,  tudo nos parece ocupar um lugar comum. Entretanto, para os mais ilustrados e de aguçados olhares, surge algo que salta das entrelinhas do texto como um objeto de arte, ocupando o lugar da palavra (e por querer falar) por outras vias, vai além de linhas imaginárias ao revelar sentidos ocultos no dizer. Para tanto, não basta olhar. Há que refletir sobre a obra enquanto arte. Há que se ir ao encalço dos muitos rastros demarcados pelo pensamento do autor em cada obra – para lá, no interior da historia, levantar as cortinas que embaçam a visão do leitor – e, então, penetrar no indizível. Eis a leitura  das entrelinhas: um intrincado arcabouço  de interpretação de leitura acompanhada de traços que falam de pensamentos ocultos.

 É desse modo que me debruço sobre o livro “A parte que falta” do autor Shel Silverstain. Um livro infantil composto de textos e desenhos com pinceladas de grandes metáforas. O traçado do desenho apresenta-se através de um personagem como um grande “O”, onde a história tem início.  O clímax da narrativa atinge seu momento crítico: encontrar a parte que falta. Para dominar a cena dessa jornada à procura da parte que falta – o grande “O” segue rolando seu caminho sem cessar, á procura da parte que falta – e encontra várias partes mas com tamanhos diferentes ao de sua fenda até que, não por acaso, ele encontra uma parte que dá o encaixe perfeito e ele estabelece um diálogo com a parte:

“Achei a parte que falta em mim”,
ele cantou.
“Achei a parte que faltava em mim,
asse o pudim, faça o quindim,
achei a parte...”

“Espere aí”, disse a parte.
“Antes que você asse o pudim
E faça o quindim...

Não sou a parte que te falta.
Não sou parte de ninguém.
Sou parte completa.
E ainda que eu fosse
A parte que falta em alguém,
Não acho que seria a sua!”



 E o diálogo do grande O manifesta sua decepção e continua rolando em busca da parte que lhe falta. Talvez, pudéssemos afirmar que em cada um de nós existe essa falta concreta que achamos ser (ausência) de uma outra parte (fora de nosso corpo) o que nos faz sentir tão incompletos. Ainda, poderíamos recorrer a problemas emocionais e amorosos e atribuir uma falta abstrata como causa de nossas frustrações. O autor Shel Silverstain aborda através de uma linguagem simples o cotidiano emocional da existência humana, relatando por meio do conto infantil as perspectivas desse novo olhar  a realidade ao nos depararmos com as várias faces de um todo imaginário. A linguagem desenvolvida pelo desenho gráfico impõe a cena do diálogo – e esse diálogo, ultrapassa o imaginário infantil para ceder lugar ao drama existencial –  um recurso semântico onde a metáfora cumpre sua função intencional.

 Entretanto, cai sobre mim uma reflexão em “A parte que Falta”: que tipo de leitor Silverstain quis alcançar?  Terá sido apenas o público infantil? O autor ousou despertar o imaginário da criança mas acertou o alvo pela metonímia da “falta” – uma fatia do recorte temático, pode oferecer lugar para uma leitura da vida – que se passa no cenário interior das emoções como constatação do sintoma que se inscreve no outro.

 Desse modo, fica um alerta aos professores: permitir que haja em cada criança o seu infans  que ainda não se manifestou. O desenho alcança a linguagem do olhar da criança e isto basta como proposta de leitura. A fenda triangular posta no desenho do grande “O” pode ser entendida como uma boquinha entreaberta que a leitura infantil dará como resposta. Pois bem, literariamente, também há poesia nesse olhar do infans, a ideia de uma cara que rola em busca de uma parte que falta pode sugerir outras possibilidades, desde que haja o incentivo para o alargamento da discussão entre o professor e a sua turminha.


Ao concluir esta breve reflexão sobre o livro "A parte que falta" gostaria de enfatizar a felicidade do autor nessa grande temática: o diálogo é quase um jogo pela busca, busca da vida e de ser feliz, de encontrar a outra parte que falta naquilo que nos completaria como seres carentes; aquilo que nos complementa em nossas ações psicológicas e físicas. Uma busca necessária – diária, pois quase sempre em cada ser humano há essa espécie de “fenda” – essa parte da emoção que foge a razão e que por isso mesmo nos deixa um vazio constante: uma busca pela parte que falta a ser  preenchida.

Portanto, rolar rumo ao futuro e ir em busca da parte que nos falta, eis o grande jogo. Como definir a magnitude desse conflito andrógino numa abordagem, aparentemente,  tão inocente?  O autor Shel Silverstain com poucas palavras mapeou o que se esconde no interior do humano e o segredo de não ser “completo” – continuar “rolando” é a proposta de vida na busca pela falta para sermos felizes.

A quem se se destina o livro “A parte que falta”?