O desejo de “não-crescer”
Por que
algumas crianças expressam um claro desejo de “não-crescer”? Talvez tenhamos de
observar com maior rigor o que estaria acontecendo com aquela criança durante seu processo de desenvolvimento? Sabemos que
durante a infância toda criança recebe uma enorme quantidade de
informações que acontecem a cada
instante do seu desenvolvimento de aprendizagem. Nesse momento, o percurso
normal dos pequenos passa por uma
alteração física e, às vezes, emocionais. Daí, os obstáculos que se apresentam rumo ao
futuro entre a infância e a adolescência, são
capazes de modificarem literalmente, as estruturas comportamentais,
alterando os hábitos que são repentinamente mudados, afetando o humor. Até
aquele instante onde o compromisso era só brincadeiras, sem aviso prévio,
surgem as mudanças nas quais se instalam
as obrigações dos estudos, juntamente com o rigor das tarefas imprimindo
responsabilidade.
Não há uma receita pronta. Os dias não se
anunciam no calendário imaginário da criança e, muito menos, na visão dos pais.
O processo é muito rápido e não há tempo de uma preparação psicológica para que
todos possam enfrentar os novos padrões de exigências diante da nova fase que
se apresenta com mais cobranças. Se, além do novo status de aparência física, ainda
surge um outro vilão para concorrer com aquelas dificuldades já existentes, permeando
o aprendizado, como é possível a criança não
reagir diante desse turbilhão de acontecimentos desde os psíquicos,
físicos até aos materiais?
Assim, os processos atribuídos às crianças
ganham rótulos diversificados por comparar: compara-se tudo, tamanho e idade,
condições sociais, casa, escola, objetos pessoais. Enfim, esses problemas surgem
advindos da pouca confiança na qual a criança deposita em si mesma. E esse
quadro ainda pode piorar quando o perfil daquele que se vê comparado lado a
lado (com o outro) – quer seja pelo
tamanho físico de um de seus coleguinhas, ou pelo intelecto – metáfora
significante para mostrar o tamanho da própria insignificância – medida de
sofrimento causada pelo do bullyng. Nesse momento, a soma dos itens que trazem
frustrações é grande, desde o desejo não realizado pela falta dos objetos
pessoais até o distanciamento da realidade com relação a escola do outro que entra no script para qualificar o sucesso
ou o fracasso, onde o ensino mostra sua diferença pontual.
Desse
modo, como evitar frustações que são tão danosas em idades tão tenras? E o que
os pais deverão fazer para atenuar esses sentimentos que causam tanto
sofrimento e podem se manifestarem
através de um sintoma, de uma síndrome ou até mesmo (no futuro) em um
transtorno? Tendo em vista tais condições, proponho uma
observação severa e investigativa por parte dos pais e dos professores, para avaliar
evidências presentes no complexo campo educacional, rever as tarefas de
atribuições do currículo do professor
que terá de ser cumprida com segurança, mas sem afetar o aluno que já
vive uma sobrecarga (às vezes), desnecessária.
Assim
sendo, acredito no apoio psicopedagógico como primeira linha de observação para
tratar possíveis causas sintomáticas, antes que elas surjam como processos
traumáticos, impedindo a criança de avançar em seu desenvolvimento de
aprendizagem.
Pensando na proposta curricular do professor,
faço um questionamento: por que até agora, em pleno século XXI, não se propôs
um estudo psicanalítico mais abrangente a vir a ser inserido, no contexto do
conhecimento pedagógico para alicerçar o saber do professor em suas diversas
áreas do ensino, oferecendo suporte de apoio tanto para o aluno quanto para o
próprio professor? O acréscimo do
conhecimento psicanalítico na formação
do professor, independente de ser ele psicopedagogo ou não. Ampliar essas
possibilidades geram recursos e subsídios ao professor. O conhecimento dessa
prática analítica auxilia o ponto de vista da observação para melhor direcionar
o problema. Eis aí o que disse Perrenoud: “Fornecer
apoio integrado para os alunos com grandes dificuldades (...) Dominar um
procedimento clínico (observar, agir, corrigir, etc.), saber tirar partido das
tentativas e erros, possuir uma prática metódica, sistemática” [1].
Acredita-se,
ainda, que, dessa forma, as tarefas gerenciadas com maior cautela por parte do
sistema de ensino possam trazer benefícios consideráveis tanto para o aprendiz
quanto para o professor. Por essa razão, o professor é a pessoa mais autorizada
nessa investigação pelo tempo que ele mantém na relação de binômio
professor-aluno. Diante dessa afirmativa, o professor estaria habilitado para detectar comportamentos sintomáticos e providenciar o
encaminhamento quando necessário, para profissionais qualificados dentro da
função indicada. De certo modo, a psicopedagogia já vem atuando com sua epistemologia
no campo da neurociência cognitiva, aprimorando conceitos e estudos dos diferentes ramos do saber
científico, buscando através dessas teorias e práticas, avaliar a validade
cognitiva, as trajetórias evolutivas, os paradigmas estruturais de cada caso
com as relações implicadas na história da aprendizagem e os problemas do
não-aprender. A teoria da ciência psicopedagógica pode ser capaz de ceifar
desajustes emocionais na escola para se evitar os transtornos futuros com a
aprendizagem.
Pode até parecer utópica e um tanto otimista
tal proposta, mas ainda é possível
acreditar que a única solução capaz prevenir os problemas da aprendizagem
estaria depositada em dois pilares bem distintos: pais e professores. Mas sabe-se,
também, que o professor dos dias atuais, estaria sobrecarregado de suas atribuições
(mais que pedagógicas), com múltiplas
responsabilidades, e sem o reconhecimento devido. Por assim dizer, falta a esse
profissional o privilégio que fenece a cada dia no mito de um dia passado, não
muito distante: o conceito de respeito e sabedoria.
Mas ainda
assim, é para o professor que estará depositado as projeções alheias
acompanhadas de algum modo, pela admiração de alguns poucos. Porém, não lhe
faltará o desejo de alcançar o alvo e esse profissional não ignora o lugar que
lhe é outorgado pelo seu aluno, mas há algo maior no desejo do aluno que o faz
conferir esse lugar ao professor como
uma possível transferência do desejo de ser: ser um dia o mito de ser igual ao
professor.
Para que
a aprendizagem aconteça, será importante
relacionar o par de palavras: objetividade e subjetividade e avaliar suas
implicações tanto positivas quanto negativas. Entretanto, se estas ações não
estiverem equilibradas de modo a proporcionar uma aprendizagem adequada, uma
dessas palavras poderá recair sobre o sujeito e, sobretudo, com uma carga
semântica negativa, mas que também pode ser positiva. Portanto, o binômio
professor-aluno estará diretamente vinculado a esses processos de aprendizagem:
o sucesso de um será a realização do outro.
Acreditamos
que só através do educador o aluno poderá depositar seus reais valores
emocionais e vivenciar o real educativo
sem sofrer os efeitos da subjetividade. Por isso, essa referência na relação
pode ser validada: quanto mais positiva e objetiva for a relação de
transferência, maior e mais efetiva será a resposta nesse contexto relacional.
Esta proposta sugere rever os atos educativos
ao direcionar o foco para atingir o que afeta a aprendizagem naquilo que
estaria gerando negação ou subjetividade às crianças, pais e familiares. O alvo
a ser atingido é a desconstrução de mitos negativos e subjetivos
sobre os problemas da educação e da aprendizagem. O fenômeno (aprendizagem)
confere a muitos um prazer de saber e, em tantos outros, uma aversão em todas
as idades. A aversão ao ato de aprender, atualmente, vem ganhando espaço em
observações clínicas e psicopedagógicas, o que, de certo modo, faz nascer uma
constelação de teóricos que passaram a investigar e a atuarem nesta linha de
pensamento. Conferimos o que nos diz Sara Paín: “A objetividade instaura a realidade, isto é, aquilo que nós
consideramos real, que está fora de nós, cujas leis não podemos modificar.
Podemos repensar, mas não podemos anular essas leis. Por outro lado, o
subjetivo se instaura na irregularidade,...” [2]
Não se pode abstrair da palavra aprendizagem o
desejo de saber. A coexistência do desejo de saber é uma realidade da relação
de aprendizagem que existe entre professor‑aluno e aluno-professor e é somente
através do desejo – desejo daquele a quem o conhecimento falta – que estaria o
desejo do professor de ensinar, pois, de acordo com Lajonquière (1999, p. 141),
"todo adulto educa uma criança em nome do desejo que o anima.”
O
discurso psicopedagógico apoiar-se-á na
estrutura da epistemologia psicanalítica, servindo-se dos instrumentos
científicos indispensáveis à linha teórica e discursiva desta escrita.
Neste processo teórico, prioriza-se a
necessidade de se repensar as bases estruturais da prática do ensino no
contexto da aprendizagem, destacando-se a observação de casos de crianças que,
durante o ato de aprender, apresentavam uma síndrome resvalando no limiar de um
certo tipo de transtorno.
Esta investigação é o resultado de uma longa
jornada pelos caminhos da educação psicopedagógica e, através dela, surgiu,
então, como conseqüência inevitável, a pesquisa: fonte de observação como
objeto de estudo para o doutoramento. Dessa vivência teórica de sala de aula,
pode-se aliar à escuta psicopedagógica
longos anos do exercício da
prática docente. Daquela vivência, pude
ouvir queixas de professores e pais de alunos sobre as diversas
dificuldades de aprendizagem.
Naquele momento, minhas observações só se
articulavam em torno das dificuldades da criança no ato de aprender, mas sem a
generalidade que tão comumente os mais leigos costumam verbalizar a respeito da
não-aprendizagem. Então, os tipos de queixas se apresentavam com manifestações
bem diversas e envolviam todo percurso do desenvolvimento cognitivo da criança
no que se referiam às questões de aprendizagem e sua problemática: em todos os
discursos e queixas, o transtorno era o mais discutido. Percebi que a palavra transtorno era muito comum nos discursos
daqueles professores que, naquele instante, eram, também, meus alunos. A
palavra transtorno, para eles,
possuía uma conotação semântica diferente daquela do sentido real da palavra.
Percebi a urgência em desfazer equívocos. Tivemos então, de intervir para
desfazer o engano das múltiplas distorções quanto ao emprego dos termos:
síndrome e transtorno, além de outras dúvidas que surgiam no decorrer das
aulas.
Mas aquela intervenção não surgiu do acaso. Ela trouxe
uma reflexão que deu origem a esta abordagem sistêmica na forma de avaliar, de
inferir e de abordar um tal sintoma: a
palavra transtorno ganhou uma síntese e passou a pertencer a um glossário
condizente aos critérios patológicos.
Os processos
sintomáticos adquiriram respeito por parte dos meus alunos‑professores e
passaram a ser por eles avaliados sob uma nova ótica. A partir daí, esse
assunto tornou-se objeto de estudo e, nesta investigação, apresenta-se, ao ser
construído, não mais como um conceito, mas como um objeto epistemológico.
Porém, de
imediato, surgiu a inquietante reflexão: por mais que os assuntos ligados à
problemática da aprendizagem fossem atendidos em suas carências, ainda nos
restavam mais dúvidas que certezas. E por mais que os profissionais da saúde e
da educação se dedicassem à temática numa tentativa de dar conta ao se
desdobrarem sobre a questão, ainda assim, o quadro de carência sobre as
dificuldades de aprendizagens era maior e o resultado dessa prática refletiria
em nós como insuficiente.
A psicopedagogia surge em meio ao impossível para se tornar ciência
metodológica possível, uma espécie de âncora em meio às turbulências dos
problemas da aprendizagem que afetavam a educação. Com o decorrer do tempo,
investigadores como Jorge Visca, Alícia Fernandes, sara Paín, Nádia Bossa,
Maria Lúcia L. Weiss, entre outros pesquisadores da psicopedagogia
institucional e clínica, empenharam seus nomes às divulgações teóricas. A
partir desses eventos, a psicopedagogia tornou-se referência para educadores,
psicólogos entre outros e uma recorrência acadêmica frente às dificuldades de
aprendizagens.
Daí, talvez, tenha nascido o desejo de transformar
o binômio professor‑aluno e aluno-professor em um material de estudo
observacional diante da subjetividade que a aprendizagem, até certo ponto,
oferece como instrumento de estrutura empírica: possibilidades de pesquisa para
um aprofundamento nas questões da aprendizagem no que se refere aos
transtornos; entretanto alguns elementos de aprendizagens fugiram do controle e
quiseram se transformar em novas aprendizagens nesta releitura de escrita
acadêmica. Confesso não era essa a minha idéia,
mas quando o tema surgiu por imposição de alguns dos meus alunos do
curso de pós-graduação em psicopedagogia, lógico que fiquei tentada de certa
forma a colocá-lo em prática. Porém , para dar
continuidade a uma proposta com tamanha exigência e do tamanho da
responsabilidade a que se submete a questão da aprendizagem com o seu teor de
subjetivismo, penso ser esta tarefa um tanto ousada para quem está apenas
iniciando o caminho. De certa forma, a ousadia imperou e a escrita quer se
fazer presente ainda que longe de alcançar relevância científica, tentando
revelar neste objeto de estudo o pouco que se pode abstrair - das muitas e
importantes histórias de aprendizagens - histórias de “outros” que puderam ser
ouvidas e que, aqui neste escrito, se
entrelaçam com a minha própria história ao percorrer este caminho que até certo
ponto, é puramente solitário, pois a natureza
investigativa assim exige para descrever o escrever do Stricto Senso.
Convicta de estar diante de uma tarefa nada fácil,
ainda assim, propus-me à caminhada científica. Acreditando encontrar eco
naquelas vozes daqueles (outros) que um dia no passado me fizeram crédula, a
ponto de inflamar-me o desejo, o qual hoje domina toda a minha existência nas
formas de pensar a educação e o sujeito como um “edifício em construção”,
embora saiba que cada peça desse ser chamado
edifício em construção, metáfora precária de
“evolução” para emprestar um nome ao sujeito enquanto aprendiz, quer referir-se
ao desenvolvimento do aprendente. Esse
sujeito aprendente terá de enfrentar, no seu longo percurso de vida, todo tipo de intempéries, porém de caráter do
próprio ego.
[2]
Sara PAÍN. Subjetividade e Objetividade, Relação entre Desejo e Conhecimento.
Editora Vozes,Petrópolis, RJ, 2009