terça-feira, 22 de outubro de 2019

MANHÃ DE OUTONO

Manhã de outono
Por: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital


Numa manhã de um  outono tardio, um  fog  serrano (quase londrino) passava lá fora veloz e,  entre nuvens  brancas e  maciças, parecia se diluir aos poucos. O fenômeno representa quase um prenúncio de uma densa chuva  fina e fria  (chuva invernal),  cuja  jornada de passagem   invade as  brechas de qualquer lugar,  de pessoas e coisas. Além de um véu branco pronto para umedecer a alma de tudo o  que alcança.  E não falta nesse cardápio um forte vento uivante ao registrar suas peripécias por onde passa ao deixar sua marca similar tal qual a de um fiel  discípulo – o de   aprendiz  de tufão; mesmo sendo em escala inferior, não dissipa o terror de sua ameaça – de fazer   gemer  fibras de  portas e janelas, derrubar árvores e destelhar casas, gerando uma certa impotência  no silêncio de cada um diante do espetáculo exibido pela natureza.

Assim, os dias se alternam entre os ruídos e silêncios (nada indeléveis) de sons inusitados. Nesse período do ano, anuncia-se o tempo das águas revoltas, de chuvas ameaçadoras que prometem despencar montanhas abaixo carregadas de tudo o que encontrar pela frente. São dias e momentos tenebrosos. Porém, há também a calmaria de dias infindáveis, de lua e estrelas radiantes com que os céus vizinhos nos brindam, mesmo que distantes.
  

Pois é. Assim, vive-se uma fantasiosa percepção de todos os sentidos (bons e ruins) num único instante: ancorando-se em  aguçadas visões de estranhas pareidolias, que vão muito além de céus  de nuvens negras com seus sinistros cumulonimbus aos céus azuis de cirrus de cristais com seus desenhos aquarelados. Nesse cenário de intemperes, a poesia pede licença e um balé musical entra em cena: cortinas esvoaçantes  são vestes no ritmo dos ventos ao som da Valsa  das Flores de Tchaikovsky.  Vibrações minúsculas se mesclam diante de uma imaginária orquestra – até  o replicar de sinos pendurados nas varandas complementam o espetáculo, obedecendo a batuta dos ventos.

 E assim, a imaginação ganha status de realidade em desafiar o supérfluo ao narrar ideias que possam adquirir formas de viver a contemplação para driblar a solidão. E tendo Deméter, a deusa da vegetação,  poupado a  vida dos grãos, concedeu-lhes a cada três meses do ano  uma nova troca do figurino de campos e pomares, para celebrar as quatro estações.  E entre esse vislumbrar o belo de cores e arco-íris, vive-se também o arrepio de uma inquietante intuição – a angústia de uma poderosa ameaça íntima, de uma certeza nostálgica, de uma convicta sensação de que a vida é parte dessa natureza que vive seu tempo no calendário da existência humana.

 Assim sendo, não devemos chorar por nada que a vida nos traga ou nos leve. As expressões de viver alguns instantes o pesadelo dessa observância circunstancial, por vezes, acende o alerta do instinto da dramaturgia em um de seus momentos: psicológico, dramático e ou artístico, bem à moda Pessoa. E cada um vive o que lhe cabe por conveniência, embora exista circunstância em que não há tempo para escolher, principalmente quando o “depois” chega sem anúncio prévio e resolve tudo silenciar.  E eis aí o silêncio como significação paradoxal para o ato de perceber e não o de falar; é o de sentir e não poder exprimir por saber que nem sempre o ser humano é só instinto. A essência do silêncio abraça o paradoxo e não paralisa o movimento  em sentir a proximidade desse “agora” inexplicável. Assim, apressadamente,  esse agora tem voz e representa o mistério de  (um “antes”). Em suma: o agora é a antecipação  pelo medo do “depois”! E nessa tormenta delirante, surge a pergunta:  o que seria o depois  se ele já é manifestação real no presente? E o agora? O que fazer desse agora, se o agora não se faz  visível, pois se ele vive além da curva?  Claro está que aquilo que não se vê, por estar  longínquo, aparentemente,  repousa no imaginário do existir pela cópia desbotada do “antes”.   Antes? Antes do quê? Esse antes é o nome precário da imortalidade  a qual se imaginou uma vida inteira! Mas não se trata de um pessimismo ou uma mera reminiscência daquele que ingenuamente vislumbra a eternidade pelo viés do passado. O antes, o agora e o depois são linguagens do silêncio, são vozes do silêncio que prenunciam aquilo que as lembranças trazem em formas de nostalgias com pinceladas de lamúrias escritas. Talvez, isso possa significar o ruído das ideias em busca de um ato intelectual criativo, para dar forma artisticamente ao vazio criado pelo silêncio.

O ato de ser só não significa estado permanente de solidão. Porém, quando se está só – a observação sobre a vida ganha relevos distintos e sentidos inusitados: ora, revelando matizes bem apropriados (com o agora de cada existir) e ora, permitindo a natureza psíquica revelar o que há em cada ser; e, nesse concílio de formas de pensar,  tudo ganha uma outra dimensão. Os aspectos mais sutis se tornam densos e se elevam às potências inimagináveis de onde surgem tais manifestações, advindas da natureza externa e interna.  Saibam: há um céu límpido e um céu tenebroso em cada ser. E essa pulsão de vida torna-se variável do antes com permanência efetiva no depois ao mesclar de incertezas o agora.

Assim, desse momento solitário – tão comum ao escritor, somente as palavras serão capazes  de ressoarem no silêncio de onde nasceram, e,  em voz silenciosa, serem hóspedes  na escrita. Por isso, desse agora ainda que banal, porém  invulgar, inaugura-se esse imprint de pensamentos –  matéria prima de tormentos; produtos desvelados e não destinados para um  olhar qualquer – mas para o olhar poético que ainda pode ver aquela estrela distante, quase se apagando, mas que ainda teima em brilhar, mesmo que nenhum olhar a alcance. Assim, a vida aqui na terra também marca sua existência luminosa: todos nós vamos perdendo dia após dia um pouco do nosso brilho sem que ninguém nos alcance.