domingo, 1 de março de 2020


A semiótica do olhar e suas linguagens: um recorte no modo de ver para além do visível

Professora: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital

Las Meninas, Diego Velázquez 
“Se eu deixar de ser poeta, morre em mim um pedaço de existência e, comigo, morre de certo modo, (o sentir como forma de ver); pois para o olhar do poeta, o alvo é tudo aquilo que ele vê e sente.”
Vannda Santana (inédito, no prelo)
“A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível”.
                                                                                                                                                        M. Foucault
 


Admirar uma obra de arte é sempre uma experiência estética e agradável; uma prática inovadora que exige um constante exercício para um olhar especial. A diferença fundamental consiste no modo de olhar e no modo de  ver, um processo puramente físico, mecânico, perante as coisas vistas do mundo que nos rodeia. Esse olhar exige um leitor que saiba ler e ver os critérios que deverão passar por essa “lente” tão superior, capaz de revelar nesta observação a expansão de uma percepção aguçada do mundo sensível, mostrando relevâncias pictóricas para além do visível.
Portanto, é nesse Ver e é nesse Olhar que se fundamentam as diferentes formas de ver, diante das funções pelas quais se manifestam os sentidos de significação: há um olhar que simplesmente vê e nada registra e um outro debruçado em emoções sobre o prisma daquilo que, com sentimentos, pode conduzi-lo ao ato de refletir.
 Essas são algumas das tarefas intrínsecas desse órgão foto‑excitável, fotorreceptor e sensorial, tudo executado ao mesmo tempo, o qual se nutre pela sensibilidade da luz por ser fotossensível. E o olhar é uma janela translúcida pronta para  transmitir e focalizar a luz dentro do olho. Não é por acaso que se diz que o olho é a janela  da alma  por captar e suscitar  emoções. Mas existe também uma função no olhar que se propõe divergir de outras perceptivas; e sua finalidade é a  de discernir e de interpretar ao ser filtrada na memória diante das coisas capitadas vistas no mundo externo.
 Sobre essas formas de ver e olhar, também há algumas restrições de acordo com cada  cultura. Por mais ampla que seja a forma do olhar, há um limite cultural impondo sua doutrina específica. É nesse limite que se enquadra a prática da observação, dos sentimentos, do conhecimento e da cultura geral de cada povo. Daí por diante, conclui-se que o olhar tem muito mais a dizer daquilo que vê sobre o alvo observado, que pela capacidade puramente intelectual.  O olhar que se destina ver aquilo que está exposto dialoga com suas pré-condições emocionais. Nem sempre o foco se abre para o alvo de uma mesma forma; para além do olhar, resta uma indagação: quantas são as leituras direcionadas sobre o mesmo matiz em exposição?

 Não há leis nem regras que possam subordinar os modos de olhar ou ver um objeto de arte. Seria possível afirmar que cada pessoa tem um limite para cada visão, mas não para o limite imposto pelo defeito e, sim, pelo limite perceptivo, o que “intui”. Essa capacidade intuitiva do sujeito amplia a forma de ver com as cores que envolvem o sentir. O olho humano não está sozinho nessa caprichosa arquitetura no modo de sentir com o olhar.

Por isso, pode-se dizer que o olho físico esconde por trás do olhar muitas incógnitas e muitos mistérios:  olhos que pensam, olhos que sorriem, olhos que choram. Podemos até arriscar alguns devaneios  ao imaginar: o que  pensa aquele olhar distraído e que  mensagem a pintura expressa  quer falar àquele olhar que a vê?

A semiótica do olhar não busca encontrar definições prontas para as questões fisiológicas do olhar.  Este esboço, nada mais é do que  suscitar uma reflexão sobre a Fenomenologia da Percepção (2006)[1]: sobre o que o olho pode ser capaz de ler, ver, sentir e falar, diante do objeto observado. Essa releitura do ver, sob a ótica do autor, levou-nos a compreender o fenômeno do aparelho perceptivo, para além de um olhar. Visto que há vários olhares: olhar de contemplação, olhar perdido que vaga na imensidão, olhar de desprezo, de conquista, do safo, olhar de esperteza, do moribundo e o olhar de ironia que tanto valor empresta à literatura.

 O objeto como fenômeno, nesse contexto do olhar, emerge em especial diante da obra de arte, capturando as várias formas e os sentidos refletidos no olhar do objeto a ser observado, assim como, as várias formas do observador ao observar o objeto. Podemos ainda dizer que o objeto (obra de arte) sujeita-se ao enigma do espectador “ o que se quer ver”, pois  há sempre um modo de sentir aquilo que o olho quer ver. Assim, há sempre  uma verossimilhança e uma mirabilia para cada olhar que “olha” e um olhar para cada individuo. Pois, assim sendo, por trás de cada olhar existe um investimento para cada olho que vê em função de sua cultura.

Tomemos como releitura de análise o quadro de Velázquez - As meninas, apenas como proposta de observação do modo de como o artista vê a realidade – ao mesmo instante, como o observador vê o mundo que o rodeia.  A  Fenomenologia da Percepção no capítulo sobre O Corpo, Merleau-Ponty afirma que: Ver é entrar em um universo de seres que se mostram.   Talvez, esses olhares não os definam ao representar aquilo que vêem, mas ainda assim, como querem ver. O quadro a que nos referimos é uma pintura de 1656 do pintor Diego Velázquez, principal artista do Século de Ouro Espanhol. A obra de proporção gigantesca do estilo Barroco é  considerada uma das mais importantes da História da Arte e  trata-se de uma composição complexa vastamente comentada por vários observadores. O quadro As Meninas levanta várias questões e deixa algumas indagações sobre o que é realidade e o que poderia ser ilusão, criando dúvidas entre o observador e as figuras ali representadas. Há comentários de que Velázquez “pintava o ar” por ser ele um profundo pesquisador de óptica, tendo debruçado sobre livros específicos onde foi buscar conhecimentos que puderam alicerçar  sua prática na conquista de conseguir melhor resultado entre as distâncias, luz e outros agentes que exerciam sobre as formas e as cores em sua pintura.

Diante do exposto, fica a proposta para um desafio no futuro: uma análise e um debruçar diante do enigma que o olhar oferece como estudo da fenomenologia na observação da obra de arte. E assim, enredar pelo caminho subjetivo a qual a percepção de Merleau-Ponty nos convida. Consciente de que a percepção vai muito além dos sentidos, pois, através dela, tem-se um corpo e uma fisiologia que habitam todos os olhares com suas subvertidas formas de ver.  Assim, sendo, a palheta está para a pintura do artista, assim como o sentido se predispõe a subverter o olhar que olha o objeto.

 Desses olhares, ficaram em mim profundas indagações quanto às dimensões da semiótica e do olhar. Aqui neste ensaio, não foi possível esgotar seu  “todo” para  alcançar o objeto da escrita. Porém, o desejo maior se enquadra numa certeza de ter lançado dúvidas que possam ressoar como âncora para uma posterior análise. Assim, objetiva-se continuar a viagem nessa temática sedutora que a semiótica nos provoca ao navegar por essas profundezas da fenomenologia. Portanto, continuar a esmiuçar o olhar a partir das ideias: investigar os sentidos e não somente aquilo que se vê, mas o que se pode sentir com o objeto visto.



[1] Maurice Merleau -Ponty. Fenomenologia da Percepção. Martins Fontes. São Paulo,  2006