quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A Comunicação poética: o que falar quer dizer?


“O poema quer o Outro, precisa desse Outro, precisa de um parceiro. Ele o procura, adéqua-se a ele. Cada coisa, cada pessoa é um poema que se dirige ao Outro, figura desse Outro.”
(Paul Celan)






Inicio um discurso íntimo enredada no infinito do meu eu. Escrevo como quem necessita do ar para viver. Escrevo, como quem toma um antídoto para uma dor qualquer e não para ser lida na face de um frio papel. Escrevo ao destino os mais enlouquecidos desatinos e, não mais, como uma mensagem que se destina a ser decifrada por um ser desavisado. Escrevo a dor. Se é que é possível descrevê-la – essa alodinia de poeta. Por isso, escrevo sentimentos, como produto da alma. Escrevo como resultado da fala silenciada. Escrevo o grito amordaçado de mil afetos. Escrevo afetos de infinitos íntimos. Escrevo afetada pela falta de afeto que afeta o dizer das relações nas suas formas do não dizer. Escrevo o dizer que, às vezes, nada diz do que deveria dizer. Escrevo.

 Escrevo como quem sangra, acreditando na vida que pulsa nas veias onde circula a força viva da palavra. Escrevo como quem sangra na fala que faísca gemidos do miocárdio da alma. Escrevo como se fosse um surdo que nada pode ouvir daquilo que foi negligenciado aos sentidos neurosensores. Escrevo o Não de um silêncio não interpretado de uma fala que apenas fala para um Outro que, também, não fala nem ouve. Escrevo a sintaxe desmesurada no glamour da sínquise, desconstruindo a expressão no rastro rítmico daquilo que é excessivo. Escrevo a falta da fala, aquela  que nem sabe que por sua falta, a fala cala. Escrevo o fluir de um exercício de fruição de poder que o ato tem e de fazer valer o poder do sim, ao mesmo instante, que se faz valer o poder do não, como força do fracasso. Escrevo a ausência do plasma  que silencia no corpo e nas profundezas da alma a dor da palavra extirpada do Outro que  não é um outro sem mim.  E, sim, um Outro  plasmado da mesma essência, célula e sangue de existência.

Escrevo para esse Outro que vive em mim. Escrevo como quem respira em busca do ar para viver e aspiro ao nada a que a ele se impõe como àquilo que dá à vida o direito de não pode romper o ritmo. Escrevo para tingir o  impossível de se ver no claro-opaco pano de fundo. Escrevo, no escuro palco das incertezas, cenas poderosas que se evadem como metáforas de si mesmas. Escrevo histórias de seres sem voz e sem olhos, oferecendo ao Outro risadas ressecadas. Escrevo a escada da palavra nos degraus da etimologia para alcançar o cerne do poema. Escrevo, pois, para esse Outro que se oculta em meu ser e penso ser  dele o olhar que vejo em mim. Escrevo a existência desse Outro que não se extingue de mim, por mais que de mim se ausente ou fuja.


 Escrevo para esse Outro pedaço clivado de mim e que, por isso mesmo calo, por que  já não é mais preciso falar – ele é  parte forte, é ferida e é clivagem.  E se ainda necessito dessa fala, é porque a poesia não silencia  na lágrima que cai invertida e o que dela, não me isenta enquanto escrevo, transforma-se naquilo que não se vê, não se sabe nem o quê e o que está para nascer ao se escrever. Por isso, escrevo o que se pode sentir de qualquer mal-estar; por isso, escrevo todo bem que a vida dá. Por isso escrevo a força da fala prisioneira perpétua no labirinto subterrâneo. Escrevo com as mesmas palavras o sonho escondido no interior da palavra. Escrevo o que nunca talvez seja lido e que jamais será um escrito de leituras de letras sem sentidos. Escrevo a alegria de ser o que isso possa vir a ser. Escrevo o contentamento que a palavra contém. Escrevo sem querer causar a esse Outro que vive em mim, um espanto; pois ele vive quando palavreia, e vive quando deixa a poesia falar por mim.

sábado, 29 de outubro de 2016

MEDO: FISIOLOGIA OU CONSEQUÊNCIA?

O medo alterando as funções psíquicas

“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar”.



A palavra medo, do latim metus, nos remete a uma perturbação angustiosa perante a menor possibilidade de uma ameaça, diante de um risco real ou imaginário. O conceito também se refere ao receio ou à apreensão do sujeito em relação a certas doenças. Nesses casos, certamente, o medo, muitas vezes,  vem companhado de uma ação psicológica e isso é um fato comum: pois  este é um medo quase físico, de que algo possa acontecer conosco ou com um parente próximo.

 De acordo com as novas teorias, entre elas, a teoria quântica, acredita-se na hipótese de se repensar o medo – e, tratá-lo como palavra – e, não mais, como uma ação, pois, a afirmativa desses princípios, nos induz a acreditar que essas alterntivas de investimentos  psíquicos podem sim, atuar em nossos organismos modificando comportamentos ao intermediar os estímulos na reformulação do modo de agir, proporcionando assim, ao corpo e a mente uma forma positiva de pensar.  Processo fundamental para mudar sensivelmente as estatísticas de pessoas doentes e, assim, diferenciá-las das doenças.

 Fisiologia do medo

Hormônios que participam da ação:

Compreender como funciona a fisiologia dos hormônios em nosso corpo é função de especialistas. Porém, entender como esses hormônios interagem no emocional e como a emoção se processa no cérebro, deixando uma enorme confusão e criando fantasmas para além do medo, não é estudo para leigos e, sim, para os interessados no assunto ainda, que, como iniciados. Aqui estou eu como uma iniciada nessa questão.

 Acredito ser  interesse de todos saber quem são esses vilões responsáveis por tanta desordem no organismo humano, como funcionam e que reações eles causam, além daquelas que já conhecemos? Estudos recentes comprovam que esses hormônios são mediados por neurotransmissores e, como fiéis operários, estão eles sempre presentes em nosso cérebro, agindo de acordo com a demanda de nossas ações emocionais e fisiológicas.

É importante deixar claro neste artigo que o meu interesse pelo tema,  foca-se na palavra MEDO enquanto ação  e reação. Portanto, o assunto será tratado como função psíquica de um estado doentio.  O  medo adquire um status  de representação do desequilíbrio humano quando se está  diante de um sintoma desconhecido ou de uma dor, cuja existência, perdure sem um diagnóstico relevante. Aí entra o medo como causa e consequência, gerando ansiedade e terror.

Falar de um assunto que se pode experimentar  reação na própria pele, pode até nos parecer fácil, porém, não é verossímil. Entre a cobaia e a pesquisa, coexiste a necessidade do conhecimento para alicerçar saberes funcionais.

 De certo modo, os dados publicados pela Mídia nos informam, mas não formam uma base consciente. Até onde se sabe, há muitos estudos que são realmente relevantes, mas há muito ainda a ser comprovado. O bom nesses casos, é que temos acesso a informação, mas nem todos dispõem do saber acessível. Então, delega-se este saber, sobretudo,  para aqueles que possuem  as ferramentas do conhecimento específico, tais como os especialistas no assunto: médico, neurocientista e outros. Sendo assim, seria de bom tom, limitar-se às informações vagas, aquelas que sugerem uma linguagem semântica que interferem no sentido do sintoma, derivando pelo campo semiótico psíquico da emoção: a noradrenalina, a serotonina e a dopamina.

     Noradrenalina: também chamada de noraepinefrina, ela influencia no humor, ansiedade, sono e alimentação. É sintetizada nas fibras nervosas. Suas principais ações no sistema cardiovascular estão relacionadas ao aumento do influxo celular do cálcio e a manter a pressão sanguínea em níveis normais. A noradrenalina influencia no humor e no sono. Portanto a emoção estará sendo afetada.

   Serotonina: a serotonina é um neurotransmissor que regula o humor, sono, apetite, ritmocardíaco, temperatura corporal, sensibilidade à dor, movimentos e as funções intelectuais. Novamente, a emoção sendo afetada.

     Dopamina: é um neurotransmissor monoaminérgico da família das catecolaminas, produzido pela descarbonização de dihidroxifenilalanina. A dopamina está envolvida no controle de movimentos, aprendizado, humor, emoções, cognição, sono e memória.

A fisiologia do medo tem seu início funcional nas amígdalas e, essas estruturas, não tem nada a ver com as amígdalas da garganta, elas têm um formato de uma noz e ficam próximas à região das têmporas. As amígdalas  identificam uma situação ou objeto com o qual se deve tomar cuidado e enviam ao hipotálamo o sinal para a produção dos neurotransmissores. A partir daí, iniciam-se as reações no organismo que nos deixam em estado de alerta para agir: enfrentar ou fugir da situação.

As amígdalas estão presentes na maioria dos animais. São elas, por exemplo, que fazem com que um cervo reconheça o perigo e fuja de seu predador.

O que diferencia o homem dos outros animais é que ele é o único ser capaz de ter medo do medo. E isso acontece porque o homem é o único animal que consegue “imaginar”. A imaginação é mais forte que o próprio conhecimento (Einstein).

O medo é uma emoção que se caracteriza por um intenso sentimento habitualmente desagradável, provocado pela percepção de um perigo, seja ele presente ou futuro, real ou supostamente, imaginário. O medo é uma das emoções primárias que resultam da aversão natural à ameaça, presente tanto nos animais como nos seres humanos.

Biologia do Medo

Sob a perspectiva da biologia, o medo é um esquema adaptativo e constitui um mecanismo de sobrevivência e de defesa que permite ao indivíduo responder a situações adversas, rápidas e eficazes. Mas, o contrário também é verdadeiro: se o indivíduo adotar a “imaginação” negativa de que algo vai mal com seu corpo, isto de fato, pode ocorrer, pois, o cérebro é quem está no comando: ele dita as funções, modificando todas as nossas ações.

Neurologia – Cultura e o Medo

Para a neurologia, o medo é uma forma comum de organização do cérebro primário dos seres vivos, com a ativação da amígdala alojada no lóbulo temporal. Do ponto de vista da psicologia, o medo é um estado afetivo e emocional, necessário para o organismo se adaptar às circunstâncias do meio. Relativamente, o medo faz parte do aspecto social e cultural, o medo é também parte do carácter de uma pessoa ou de uma organização social.  Sabemos, entretanto,  que se pode aprender a não temer. Para sustentar tal afirmação, basta conferir a cultura de todos os povos através da literatura infantil, onde o medo tem presença imprescindível nos contos de fadas, fazendo parte da moral nas histórias. Os contos foram criados e engendrados para se refletir o universo da vida infantil que podem ser vivenciados pelos contos de fadas.

Portanto, há uma beleza  que pode ser constatada sobre o medo,  ele estará sempre presente na arte como uma forma de entretenimento e, por isso, constitui por si só um gênero narrativo (como nos contos ou nos romances e nos filmes de terror).

As consequências do medo

Como já foi visto anteriormente,  tudo o que ocorre no nosso corpo tem sua origem e princípio no cérebro. Afinal de contas é o cérebro que está no comando de nossas ações, boas ou más. 

Desse modo, ao concluir este artigo, penso que devemos reler a epígrafe de W. Shakespeare e, então, rever o modo de pensar que possa influenciar um novo comportamento e mais saudável. Se o medo nos impede de agir; mudar o padrão de pensamento poderá vir a ser uma solução cabível. E ainda, uma outra sugestão, seria evocar palavras dotadas de ações eficazes, acreditando no investimento dessa nova conduta que surgiria como fonte de grandes probabilidades.   

Fonte:
Medicina Quântica:

Uma Abordagem Psicológica Sobre o Medo:

Psicanalistas avisam que o medo é um sinal que precisa ser estudado:





quinta-feira, 29 de setembro de 2016

VAZIO ABSOLUTO

“Só esquecerei de  você e seus olhos, quando um pintor pintar o som de uma lágrima caindo” (Chaplin).


O que dizer sobre o pensamento de Chaplin, quando numa singeleza de imagem nos faz questionar a beleza que há nesse devaneio. Subvertendo o pensamento racional e linear, o autor nos propõe a poética da imaginação. Por isso, precisamos imaginar, necessitamos desejar para viver devaneios saudáveis.
O que vem a ser o “vazio absoluto”? Como exemplificar o sentido que está por trás deste par de palavras e como conceituá-lo em seu campo semântico-emocional? Consultando as várias ciências, talvez devêssemos pedir auxílio aos conceitos da Física por associá-lo ao éter, ao campo, ao espaço e à energia. Entretanto, esses conceitos da ciência são limitados porque só se validam no contexto particular ou atrelados a teoria em que são mencionados. Por outro lado, a linguagem embrenha-se em territórios epistêmicos, singularizando sentidos que não são específicos. Contudo, o que se deseja buscar, fala de um conceito humanamente maior que defina o estado da emoção contido na raiz do vocábulo ( no momento em que se escreve), aquilo que se sente e não se tem uma explicação plausível à frase “vazio absoluto”.

Vimos que teremos de recorrer à psicanálise, a fim de encontrar respaldo para um termo que possa adequar sentido mais específico à expressão. Lacan aponta para o termo “Hiância” – expressão que se refere ao “vazio”, vazio que há entre os parênteses, quando não se escreve nada dentro deles: “vazio margeado”, “relativizado pelas bordas”. [Por Extensão]A expressão se dirige ao “vazio” aparentemente subentendido pela linguagem e submetido a uma posse que se refere a um vazio absoluto. Assim, a palavra “absoluto”, em sua comunhão no par “vazio absoluto”, representa para nós (o DAS DING freudiano, literalmente – A COISA), aquilo que não é nomeável e anterior a linguagem, portanto, expressão meramente de suposição conceitual). Desse modo, também não há nenhuma aproximação com a palavra KAOS, (referência grega), a não ser que se tenha a intenção de  (nomear) dar sentido: no principio era o KAOS, no princípio era “A COISA” – um pouco forçado, porém, pode ser uma alusão aproximativa para justificar o termo em questão.

Assim, a palavra HIÂNCIA pode ser definida por um intervalo de vazio significante onde "habita", na gnosiologia lacaniana, a FANTASIA, que é a relação do Sujeito com o Objeto. Esse processo, explicitado por Lacan, ocorre sobre o fundo da HIÂNCIA, entre (between) o significado e o significante onde o Sujeito se vê refletido no vazio de seu desejo por sua ausência significante, pelo qual, ele é pura busca de significação.

Impossível não invocar Aragon pela via de Lacan em Le Fou d"Elsa numa passagem do Seminário XI, onde o poema nos revela “o olhar vazio”, uma “cegueira”. Segundo Lacan, em seu pensamento essencialmente aguçado e sensível, a fantasia seria a matriz psíquica que dá sustentação aos nossos desejos. Com tantos conceitos concebidos, acredito que será bem apropriado ilustrar a hiância através do referido poema que nos remete para o “olhar escópico”, o olhar psicanalítico, por isso, significante. Assim, o texto em questão, atrela-se  ao “vazio” como significante pela ausência do ver e do sentir, pelo desejo, tal como no poema de Aragon, que também se repete pelo “vazio” entre o olho e o olhar.



É em vão que tua imagem chega ao meu encontro
E não me entra onde estou, que mostra-a apenas
Voltando-te para mim só poderias achar
Na parede do meu olhar tua sombra sonhada

Eu sou esse infeliz comparável aos espelhos
Que podem refletir mas que não podem ver
Como eles meu olho é vazio e como eles habitado
Pela ausência de ti que faz sua cegueira[2]


Poderia ainda trazer à tona Merleau-Ponty, quando diz “(...) que suas próprias palavras não encerram o que dizem, que seu sentido transborda a significação imediata ou direta e que, enfim, o poder de se abrirem para o ser está ligado à força da interrogação que as anima.”[3]

Termino este texto sem avançar no que pretendia exercer com maior clareza: falar do “vazio absoluto” de forma simples, mas que pudesse despertar o desejo de imaginar. Desse modo, sem ter o propósito de  inserir campos complexos ao explorar os sentidos do par de palavras que deu origem a esta escrita   – vazio absoluto – restou em mim a certeza de que aqui deixo expresso o desejo de continuar meu devaneio ao imaginar.






[1] https://www.dicio.com.br/hiancia/
[2]  Anamorfose. (Seminário XI, pg 79, Imago Ed., versão de MDMagno, 1964 Fr, 1979 Br).
[3]  Maurice Merleau-Ponty, O VISÍVEL E O INVISÍVEL (trad. José Arthur Giannotti e Armando Mora d’Oliveira). São Paulo: Perspectiva, 1971.

domingo, 21 de agosto de 2016

Sete décadas e alguma coisa



















Setenta e três anos...
Uma jornada inacabada
Um roteiro em ajustes
Uma janela para o amanhã
Um mundo de sonhos
Uma estrada de aventuras
E uma indelével certeza
De venturosas artimanhas
De realidades imbatíveis
De plena diversidade
Setenta e três anos...
E a vida parece assim:
Quase uma recompensa
Quase uma promessa
Quase um oásis
Quase um espetáculo
Quase... 

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O mal-estar social ou a cristalização da violência urbana?

Por: Vannda Santana
Revisão: Leo Bárbara
10/10/2009

Esta é uma cena comum no cotidiano da sociedade brasileira.

Certo dia, descia a Avenida Henrique Dodsworth no sentido Lagoa à Copacabana e deparei-me com uma cena, aparentemente comum, tão comum, que ninguém se deu conta do que estava acontecendo ou então, não quiseram “participar” da cena de agressão que sofria uma jovem adolescente. Essa jovem estava sendo assaltada e nenhum dos passantes que por ali transitavam não tiveram manifestação de apoio ou o desejo de ajudá-la. Então, gritei, pedi socorro, fiz sinal para os carros que passavam em disparada e nada. Muito triste. Ninguém se comove mais com coisas assim desse tipo: assalto ou agressão. Atos como esses, já não causam espanto, virou banalidade ou fato comum. Porém, tal como os demais que por ali passavam e nada fizeram para defender a jovem moça, eu também, fiquei ali, inerte, sem ação por algum tempo. Depois do episódio passado, veio o pânico e a reflexão. Pensei comigo: que situação abominável!... Estamos cada vez mais sujeitos a todos os tipos de reações: medo e uma reação de inércia. Sobra em cada um de nós a indignação que nos faz refletir sobre a situação de descaso e o abandono em que se encontra o nosso Estado, deixando-nos vulneráveis e a terrível sensação de  impotência acompanhada de revolta.
Acompanhe comigo a cena do assalto: o assaltante era um menino de aproximadamente uns quinze anos. Tinha aparência de maus tratos e uma ligeireza sem escrúpulos. A semelhança física não fazia jus às características de grandes habilidades com que ele revirava os pertences daquela jovem. O larápio e ligeiro como os ratos de bueiros, não demorou e logo desapareceu. O menino tinha nas mãos um caco de vidro como arma que o fez garantir todo episódio, dominando a situação enquanto tomava da jovem a mochila que estava presa nas costas e arrancando tudo que havia dentro dela. Pasmem, senhores, com a reação de ódio do menino, ao constatar que ali só havia livros e  cadernos. A vítima era uma estudante e aparentava ter a mesma idade do bandido. A diferença entre ambos é que ela voltava de um curso com sua mochila nas costa cheia de materiais didáticos, exercendo sua cidadania, estudando e levando a sério a sua vida com dignidade rumo ao futuro. Enquanto isso, lamentavelmente,  cresce sem controle em todo país a marginalidade. Quero lembrá-los de que a data do acontecido se passou num dia de sábado à tarde e, que, para muitos, seria um dia de descanso, de curtir uma boa praia, por que não? Porém, para aquela jovem, que pensava ser aquele dia, apenas um dia a mais para seus estudos, teve de atribuir esse acontecimento traumático em sua jornada, somando surpresas desagradáveis. Enquanto para o ladrãozinho, esse dia era um dia a mais na sua rotina de bandido solto com total liberdade para roubar e ou até matar se fosse o caso, qualquer um que cruzasse seu caminho: estudantes, trabalhadores, pessoas honestas (que pagam impostos) além de idosos que por ali passassem. O sábado do bandido tem rotina e motivo garantido: a tocaia, o espreitar a presa e surrupiar tudo que puder custe o que custar.
Na cena dramática do cidadão comum, um outro grande perigo está explícito: na hora de abrir a bolsa e nela só haver bens pedagógicos, o risco de sair ileso desse episódio será quase mínimo.   
 Queridos leitores, vejam que ironia, assisti ao assalto mas não fiquei inerte ao ataque daquele menino-monstro com tais atitudes: fui para a margem da rua e sinalizava parar os carros que passavam velozes pela avenida, (eles, apenas, desviavam de mim), resolvi ir para o meio da rua para chamar a atenção, já que ninguém parava, gritei, esbravejei, fiz sinal de pare por favor e quase me atirei na frente de um veículo que parou mais adiante e com o carro ainda em movimento, adentrei falando o que estava acontecendo; eram eles dois jovens e resolveram ir comigo até a uma cabine da polícia militar que ficava bem próximo dali. Lá chegando, falamos do que estava acontecendo e pedimos que se fossem rápidos, talvez desse tempo de pegar o bandido. Os policiais ouviram e perceberam que se tratava de um assalto. Nos dispensaram dizendo que iria tomar as devidas providências. Os dois rapazes me olharam sensibilizados e demonstraram sentir a mesma indignação que me assolava naquele instante.  A atitude do policial demonstrava um certo descaso com a situação, (coisa comum) no cotidiano das grandes metrópoles, porém, aos meus olhos, havia mais que descaso, havia um compromisso com a ação do bandido pela demora, pelo desinteresse e, sem falar nada, o policial se retirou, deixando escoar o tempo naquele compasso frouxo de suas pisadas, seguindo em direção ao que me parecia ser um sistema de comunicação, pois ali havia um telefone. Então, pensei: ele vai acionar uma patrulha que esteja nas imediações. Conclusão errônea. Esperei por alguns segundos o retorno do policial e ele não voltou. Como não houve solução de socorro imediato por parte daqueles que pensamos ser: proteção e justiça, por assim, cumprirem as funções que as Leis determinam. Saí dali em direção à minha casa, levando na alma um gosto amargo de decepção. Caminhei lentamente, pensando que o tempo já deveria ter arranjado uma solução para aquela jovem,  tão jovem e vítima  do  arsenal de violência urbana: vilipendiada, atacada, molestada e sem defesa contra os gatunos do dia a dia.
 O pouco tempo que permaneci ali à espera de uma solução, a qual não aconteceu e, ainda, em meio ao choque, apenas uma constatação se fazia presente para o tamanho da frustração: a certeza de estarmos abandonados à própria sorte.
 Quanto ao descaso do policial, não sei o que dizer e como argumentar. A sensação que tenho é que tudo parece fazer parte de um “jogo”, onde quem perde é o povo e o cidadão do bem.
Há um modelo falido de promessas governamentais. Mas há um modelo novinho em folha de novos políticos, com novos discursos, novos até na idade. Porém, esses novos modelos, não passam de cópias e seguem  o mesmo padrão de todos os órgãos do governo e do poder público; aquele do dinheiro na (cueca), na (meia), na (mala) repassam a garantia da continuidade e, também  a qualidade da espécie humana: um clichê na genética social dos governantes e políticos de todas as épocas e idades.
 E quanto à proteção e à segurança da sociedade? E o medo que nos assola? Estamos numa clausura, trancados em prédios e cada vez mais sem liberdade. Mas o grande recado já está dado pelos governantes corruptos: a população que se dane. A Zona Sul do Rio de Janeiro é uma vergonha sem medida: sujeira para todo lado e violência urbana sem limites. A população está cada vez mais encolhida: ficando  doente por entre as grades, acuada com seus míseros salários de aposentados. Por  tudo isso, ficam-se prisioneiros de um país desigual. Enquanto lá do lado de fora, miseráveis anátemas tomam conta das calçadas, de ruas e praças, dos bairros e nada acontece com (eles), ao contrário, ficamos mais “presos”. Porém, só nos cabe  perceber quão duro é a certeza de que nenhuma força eficaz, por parte de uma política ostensiva, agindo em nosso favor, pudesse fazer uma ação que nos resguardassem da bandidagem em seus latrocínios e violências.
Daí, a pergunta: até quando vamos ter de conviver com a violência e a falta de administração do poder público? Confesso que o episódio citado aqui, não é e nem se trata de uma cena isolada.  A televisão mostra com detalhes os crimes acontecidos no dia a dia, graças ao serviço do jornalismo investigativo e nada é feito para dar um basta à criminalidade que avança sem controle pelas ruas da cidade.
Por outro lado, será que devemos nos conformar com os resultados das várias patologias que se manifestam numa crescente em função do medo? Medos como fobias e síndromes de pânico sendo gerados por motivos indescritíveis de violência urbana?. Além do panorama da violência, deflagram-se a desesperança e a descrença governamental por saber que teremos de conviver com o caos urbano aparentemente indefinido. Por outro lado, temos também de passar atestados de imbecis por votarmos nas promessas de falsas mudanças. E o que permanece na história? Uma polícia sem força para agir; um governo sem caráter e um baita acervo-polivalente de políticos mais que corruptos, com ações crescentes e cada vez mais ávidos. 
Retomo aqui algumas perguntas: quando a sociedade irá acordar desse sono doente para gritar por um “herem”?. Quando iremos nos unir para dar um basta a tudo que nos faz adoecer e até culminar com perdas valiosas, até de nossa identidade? Quando será que teremos a coragem de fazer valer o significado da palavra "anátema"?
 Anátema. Palavra equivalente a "herem",  empreguei-a invocando seu  último significado bíblico, uma derivação da palavra "haram" a qual significa "cortar fora", "separar", "amaldiçoar", indicando que aquilo que foi amaldiçoado ou condenado deve ser cortado ou exterminado, seja uma pessoa ou um objeto.
Quero deixar claro aos meus amigos leitores que este relato é mais que um desabafo. Afirmo ser uma pessoa comum entre os milhões de brasileiros sofrendo os acontecimentos da má administração pública e, desse modo, estarão sofrendo como eu do mesmo mau. Para maior clareza, o significado da palavra "anátema" que a empreguei aqui, encontra-se em Deuteronômio (7, 26) e lá diz: "Não introduzirás em tua casa coisa alguma abominável, porque serias como ela, votado ao anátema". Também podemos constatar que no livro de Judith (cap.16, v. 23) o termo foi consagrado a morte de criminosos e teve seu sentido ampliado para: odioso e réprobo, significando objetos ou coisas detestáveis. Desse modo, a palavra “anátema” era igualmente empregada para aquilo que causasse vergonha, desprezo e desrespeito ao ser humano ou à sociedade.
 Por esse motivo, tomei a palavra anátema por empréstimo para ampliar a força de seu significado perante a significação de um sentido de ordem a qualquer custo ainda, que, seja esse custo, o custo da própria vida. Assim, a Bíblia apresenta o deuteronomista de Jos como herói e fiel cumpridor desse mandamento (6,8.2.26; 9; 10,28ss;11,11ss. 20s). Portanto, em anatematizar com a expressão de sentido equivalente a exterminar (...) motivo religioso. (Dicionário Enciclopédico da Bíblia, p.70). Não sou religiosa, sou pesquisadora com desejo de ver prosperar o BEM.
 Se a base da justiça pudesse rever os primórdios do respeito humano no que se fundamenta a religião escrita na bíblia, penso que a (justiça) deveria usar do mesmo antídoto extraído da própria violência, e, por conseguinte, não seria pecado exterminar um mal para que esse pudesse ser contido, não permitindo assim, a derivação para o mal social sem limite. Desse modo, como fez Judith, ao expor a cabeça do criminoso tal como era executada pela prática bíblica, talvez, pudéssemos colocar às vistas públicas as armas e os espólios dos criminoso de nosso tempo. Com certeza, teríamos o basta.
 É dessa origem que provém a palavra  "Herem" derivada da palavra "haram" a qual significa "cortar fora", "separar", "amaldiçoar", indicando que aquilo que foi amaldiçoado ou condenado deve  ser cortado ou exterminado, passando a significar algo odioso, execrável, objeto de abominação pública.
Desse modo, termino aqui  meu desabafo. Mas não concluo a insatisfação de ser cidadã num país onde o desrespeito público já se tornou uma constante. E nem posso realizar minha catarse  numa anátema. Apenas acredito que o que restou de consciência humana do massacre que sofre a sociedade, resta-nos ainda, o reflexo de imagens impressas de um sangrento e colorido caos urbano, que em nós se estampa, oxidando  nossas vidas e impedindo-nos de outras aspirações.
 E não por acaso muda-se o olhar assustado da sociedade sobre a sociedade que ainda se interroga: por que o crime ainda perpetua a passos largos? E a resposta surge em meio aos discursos desgastados: não, não se preocupem - tudo está sobre controle.

Esse olhar de hoje que se esgueira pelas frestas das grades ou pelas brechas das janelas em busca de paisagens perdidas, cata migalhas ressequidas de certezas de estarmos vivendo uma história a qual o medo é a sobra como refúgio. Ainda que  haja certezas de que não haverá “anátemas” de justiça, uma nova ORDEM há de surgir. 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Os múltiplos de mim

“Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”
(Fernando Pessoa)


Eu e meus escritos e os múltiplos de mim: na poesia, às vezes sou uma jovem quase adolescente, em outros momentos, sou uma senhora recatada e, até certo ponto, às vezes, chata, prolixa, procurando a palavra certa, aquela que melhor se encaixe no verso. Mas não se iludam que termine por aí o arsenal de fantasmas que habitam em mim. Nesta conversa podem até pensar que me revelo; enganos mil. Nenhuma forma retrata o perfil dessas vozes que se fazem passar ao narrar por mim. Enquanto escrevo, uma delas “finge” ser quem sou e o que sou nem eu mesma sei. Sei que, em apenas alguns instantes, uma outra mulher estará presente neste escrito, bem parecida com aquela que você já leu, mas, não é ela. Tal como as águas de um rio que passa veloz mudando sua história, assim sou eu em cada escrito. E não sou eu quem muda e, sim, a própria história.

Diante do computador, olhando a tela, me vem à mente a professora, a terapeuta, a pesquisadora, a mãe dedicada entre outras tantas. Porém, todas questionando sempre às coisas da vida. Mas nem todas tem o mesmo perfil. No mesmo conjunto dessas muitas que sou, existe uma muito forte que, por vezes, divide o mesmo lugar habitado pela a mais fraca ao se deixar vencer pela depressão. Depressão? Sim! Depressão, como algo “sistêmico” como sintomas da modernidade.Graham Greene disse: “Às vezes cogito como é  que todos os que não escrevem, não compõem ou não pintam conseguem escapar da loucura, da melancolia, do pânico inerente à condição humana.”[1] Por isso, escrevo e não se espante com a depressão. Ela pertence àquelas pessoas pensantes, preocupadas com o rumo das coisas e da vida cotidiana. E são elas criaturas sem rosto, porém, diversificadas e de múltiplas castas: ricas e pobres, de variadas profissões, são artistas, são escritoras, são desenhistas e elas são assim, as multifaces de um só fazer. E aqui convivem muitas de mim até que algo aconteça.

 Bem, até aqui só mostrei pedaços dessas múltiplas que já são conhecidas de vocês no gênero da poesia. Mas ainda há muito mais de mim, espalhados pelos meus escritos. Por exemplo, na escrita dos contos existe uma vestimenta peculiar para cada uma das personagens e, como são poucas, posso lhes emprestar uma interessante linguagem e ainda lhe oferecer uma identidade jovem de alma romântica por trocar juras de amor infinitamente. Enquanto que nas crônicas a mesma cena já não acontece e o mesmo se dá nos ensaios, pois aí surge um outro “eu” bem mais crítico e politizado, mais consciente da realidade e nesta hora, exalta-se uma mulher questionadora, ativa; quase engajada nas questões sociais.

E ainda existe um romance, porém, (inédito) e com uma temática bastante surpreendente aparentemente e que nada tem a ver com o que sou e gosto. O romance em questão é carregado de linguagens policialescas, o que contraria a minha forma literária de escrever. No projeto inicial a escrita pretendia vir a ser um objeto de estética social cheio de aventuras juvenis, relatando fatos de um ambiente regional. De repente, ao meio do caminho da escrita, surge uma vertente modificando o tom e o clímax do romance, contrariando o estilo que a minha sensibilização e vocação haviam se emprestado ao texto. A partir desse momento, a escrita passou então a exibir uma linguagem de suspense – recheada de confissões – e isto gerou em mim uma tremenda confusão, levando-me à desistência de continuar escrevendo sobre coisas que não gosto de ver e de sentir. Fiz uma baita força para trabalhar uma narrativa dotada de características leves e emocionais, mas não deu muito certo. Por mais que eu fugisse do rumo da linguagem de crimes mais enrolada, a trama se vestia e se enaltecia de uma convicção tão real, exercendo uma linguagem independente da minha vontade. Então, parei de escrever. Mas, para surpresa minha e, possivelmente, de todos que me leem, não consegui me distanciar da linguagem do crime e da violência. Isto porque eu queria fugir à linguagem policial, pois, sem que eu quisesse, uma força estranha tomava para si o rumo da escrita. Mas fiquem tranquilos. Por saber que foi em vão toda essa tentativa, apossei-me dos conhecimentos literários e tudo que eu pudesse lançar mão para conduzir você, leitor, a esses labirintos que não foram tramados por mim oficialmente, mas que nele conterá uma surpresa agradável, para isso bastará lê-lo até o fim. Entretanto, certa de que a escrita teria de convencer, através das ações propostas com seus elementos que caracterizariam os tipos de personagens, tentei  buscar uma saída que me levasse a transitar mais confortavelmente pela obra: coloquei na boca de uma personagem, palavras da poesia, exaltando uma poeta muito à frente de seu tempo (eis um outro livro, dentro do livro). Claro que não foi fácil.

De acordo com tal visão, delimitei os fatos do dia a dia, compatíveis com a do cenário explícito demograficamente, para abrigar o enredo e a trama do romance. Assim, desse modo, não pude mudar o clímax de suspense da narrativa, mas pude dar ao romance uma nova energia e fazer o texto obedecer à voz que narrava os poemas. Agora, deixo você  leitor, fazer suas próprias descobertas ao longo da história junto com cada personagem.

Iniciei este escrito para falar dos múltiplos de mim. Assim sendo, quer sejam na poesia, no conto ou nas crônicas, a linguagem sempre será única naquele instante, tal como as águas de um rio. De acordo com Heráclito Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele. Desse modo, vive a “população” dos meus escritos, perpetuando-se e se fazendo significar naquilo que produz durante a sua transição. E ainda segundo Heráclito: Tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo. Portanto, não se surpreendam se por acaso uma senhorinha bem velhinha se apresentar como uma jovem e,  num outro momento, a mesma “criatura” parecer mais idosa e agir de tal forma que venha a ser uma criança. Não se trata de senilidade, nem insanidade – isto é arte e, portanto, as recebam todas com suas aventuras – pois, em cada uma, há um todo e em todas elas estarão presentes um pedaço de mim, compartilhando emoções e semelhanças.

 Demonstrei até aqui o mundo criativo que existe em cada escritor. Um certo modo de “confessar”, tal como a temática do meu romance –  confissões, onde a protagonista faz alusão à narrativa para os atos de confessar. Esses momentos de criação podem até parecer repetitivos, pois fazem parte da arte de escrever e não importa o quê.  Daí, a necessidade de ser múltiplos, de comungar verdades e mentiras, de ser o rei ou a rainha, de viver o amor ou a decepção. E, assim, ser mil em um ao exibir possíveis cenas de convivências, de comunhão e de hábitos em suas diversidades.

Eis aqui uma dúzia de mim esperando por outras oportunidades para se multiplicar em tantas mais: criança, adolescente, jovem, madura, meia idade e velha, porém, feliz.


[1] SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. Rio de Janeiro; Objetiva, 2002, p. 12.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

A SIBIPIRUNA


A SIBIPIRUNA:

 um dia de silêncio e luto na Serra

(para nós do bairro Quitandinha)

 


Professora: Vannda Santana

 

Hoje, uma bela e esguia árvore chamada Sibipiruna teve sua morte decretada na agenda de uma evolução empresarial. Uma árvore, vítima da insensibilidade humana, foi, assim, brutalmente arrancada pela raiz de sua seiva viva por uma retro-escavadeira assassina que a fez tombar sobre o chão com seus grandes galhos de verdes folhas ao serem extirpados. E, logo em seguida, em seu lugar, abriu-se uma enorme cratera onde parece sucumbir um vazio silenciado, deixado no ar e no espaço. A cratera agora sangra, literalmente a olhos nus, nos mostrando o tamanho da violência que, sem conta, sem preço, se processa contra a natureza.

 Assistimos a todo este ato com muito sofrimento e nada do que fizemos, foi mais forte que o aviltamento. Tentamos reagir para impedir que a árvore fosse retirada, mas não tínhamos poder superior que pudesse nos representar perante aquele cenário tão previamente arquitetado. Pedimos, então, a voz e a força da Associação dos moradores que, prontamente, atendeu a nossa solicitação, se apresentando dignamente pela pessoa de nossa amiga Liliana que, imediatamente, se dirigiu até o local. Porém, lá chegando, veio ao seu encontro um cavalheiro, operário altamente significante, trazendo em suas mãos “uma folha de papel” e apresentou à nossa amiga com toda a sua finesse. Esta “folha” certificava a autorização à retirada da árvore. Sem argumentos, nossa representante se retira meio decepcionada diante do fato consumado. Então, só nos restou a triste sina em ter que  assistir como cúmplices àquilo que para nós parecia ser um crime ambiental. Leigos que somos até certo ponto em assuntos ecológicos e de ecossistema, acreditamos que a “folha de papel” tinha mais valia documental, por aferir valor de autorização ao crime do que a nossa vontade de fazer prevalecer o belo espetáculo que a Sibipiruna  nos reservava para o mês de setembro: um florescer em ouro. E  agora só nos resta assistir de pé o que não mais poderemos ver, uma vez que a pobre árvore tenha sido derrubada.

 Todos nós ficamos um pouco órfãos com o luto que nos coube sentir, lamentando a cena que ficará para sempre marcada em nossas memórias. Pois, diante do episódio, nada parecia deter tamanha fúria da máquina-assassina. Diante do feito, e de posse da frustração pela ação do homem, nos restou a impotência de nossas vozes ao implorar, apelando pela vida da árvore, certos de que nada tenha valido perante o fato, calamos com certeza  do sentimento de não sermos ouvidos, mas certos de termos feito aquilo que nos cabia no momento.

 Obrigada Liliana! Valeu sim o seu empenho a nosso favor. Sabemos que fez mais do que podia ao exercer como cidadã tal compromisso social. Estamos certos que a tristeza que nos abate neste momento é um tanto sua também, pois ela tem o caráter da verdadeira indignação pela invalidez do significado maior que tinha como objetivo salvar a Sibipiruna. Mas isto não irá nos calar nem tão pouco nos singularizar. A razão nos diz que seremos justos e que cumpriremos com os nossos deveres de cidadãos, ainda  que nossas atitudes não falem mais alto. Mas a nossa consciência não dorme e nos ensina defender a vida mesmo quando o propósito parece ser impossível.

 Ficamos com os ruídos que se podem ouvir agora: a mesma máquina assassina parece (gemer) sem parar, preparando o solo para um outro “semear” – um pedaço de chão está sendo burilado para dar lugar ao mais novo comércio de carros.

 Mesmo que esse novo espaço, que por si só, já se contradiz às mais nobres funções ecológicas, pensamos serem os empresários também filhos e irmãos habitando o mesmo planeta, o mesmo verde da planta, tão necessários para todos nós. Assim, desse modo,  penso que se trocam a seiva e o verde tão importantes para a vida de homens e pássaros, pelos “futuros pulmões” humanos com possíveis enfisemas. Em breve, a cratera deixada será um espetaculoso pátio “colorido” (não de flores) mas repleto de agentes poluentes.

 Eis a evolução dos tempos modernos que chega aos centros urbanos e avança até os confins do sem-limite e do sem-medir-conseqüências. Isto é bom? Sim, sem dúvida. Mas, talvez, pudéssemos poupar algumas espécies da natureza de sua extinção tão abrupta. Não me expresso contra o processo de evolução. Minha indignação se dá pelo desrespeito que este progresso impõe contra ao ambiente e, notoriamente, exacerbando a insensibilidade de alguns.

 Quero deixar explicitado neste relato que não tenho nada contra os carros, pois eles são necessários à vida urbana do cotidiano. E mais ainda, não tenho nada contra os empresários, pois eles fazem da vida todo esse fluir em movimentos dinâmicos para gerar  mais e mais empregos.


 Porém, é meu este lamento, é meu este grito que silencio. Neste lamento, deságua em meu peito uma tristeza profunda que se faz notar pela ausência de alguns pássaros que terão de buscar outros abrigos mais distantes. Este é um silêncio tingido pela bruma fina e fria a qual se faz encorpar de um branco embaçado que mais parece comungar com aqueles que agora choram como eu, pelo silêncio cenográfico que se espalha pelo chão e, sem medida atinge a atmosfera  e o espaço geográfico.


Este é o desenho da minha dor. Defino aqui o meu vazio; o vazio deixado impunemente e que os meus olhos tiveram o desprazer de assistir. Lamento, sim, o olhar do bairro e dos transeuntes que por ali irão passar e  não mais hão de ver o deslumbramento de uma florada em festa. Por último, lamento sim, pelos que ainda irão passar e, simplesmente, não mais poderão ver e nem mais ouvir o alarido do cantar dos pássaros na algazarra pelas flores. Lamento pela ausência do néctar das flores amarelas, pela ausência das borboletas sobrevoando e pousando na minha janela. Lamento ainda, os dias mais amarelos na falta do sol que somente a Sibipiruna tão bem sabia representar com sua veste coberta de flores cor de ouro.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A inocência poética nas palavras: "Exercícios de Ser Criança" de Manoel de Barros

A inocência poética nas palavras:“Exercícios de ser Criança” de Manoel de Barros



O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro  botando ponto no final da frase.Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
Manoel de Barros


O Exercício de Ser Criança de Manoel de Barros apresenta poemas narrativos que contam duas histórias: "O menino que carregava água na peneira" e "A menina avoada". O livro tem como introdução para essas duas histórias um poema que trata do absurdo e dos despropósitos como matéria própria da poesia. Exercício de ser Criança deve ser lido por qualquer indivíduo e em todas as idades, “um exercício de metalinguagem” onde a poesia se comunica com as coisas da natureza, nos transmitindo emoções através da palavra-poética ao mesmo instante que nos leva à reflexão para o “ser” de ser da criança em sua pureza e singularidade, explorando todos os sentidos naquilo que se pode ver, ouvir e sentir.

Por que o tema?

Nada mais além de um simples encantamento pela palavra: da palavra escrita,  não somente como função do dizer, mas do sentir; da palavra como força no poema e pela capacidade de fecundar sonhos e devaneios; da palavra como construtora de símbolos e de imagens expressivas. Assim é o livro, Exercícios de Ser Criança. Nesta obra o autor coloca em relevo uma riqueza de formas e conteúdos e, simultaneamente, aproxima a inventividade polissêmica de um processo de arrebatamento da língua literária através da poesia com suas rimas, ritmos, sonoridades e ressonâncias, despertando em cada leitor, adulto ou criança, seus múltiplos sentidos para além da fantasia, aflorando a percepção sensorial e a sensibilidade, onde o som das palavras, com sua doce melodia, nos conduz ao inimaginável.   Ler Manoel de Barros é revisitar a nossa criança interna, é possibilitar um retorno à infância, matriz da  inocência, onde repousa o imaginário de cada ser humano ou, ainda, um convite para fazer emergir o melhor que há em cada um de nós. Lembrando o que disse Antonio Cândido: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”[1]


E, na palavra do poeta, um pouco de poesia:

No aeroporto o menino perguntou:
- E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
- E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.
E ficou sendo.


A mãe teve ternuras e pensou: / Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Quero afirmar que sim. As palavras  da poesia de Manoel de Barros atravessam o tempo e o imaginário da escrita e nos envolvem no enlevo palatal de cada verso; e em cada verso, uma imagem além do retorno às lembranças da infância. Acredito nas  palavras que transformam e tocam o sensível como na expressão do afeto maternal: “A mãe teve ternuras” (...) Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que de bom senso?”.  E desse modo, o verso faz seu avesso, faz até a palavra fazer  peraltagens: “O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. (...) Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto no final da frase.
 E o que falar da palavra..., ela constrói mas também destrói, cria  pontes invisíveis com  letras feitas de som; letras feitas de imagens e, com palavras simbólicas enfeita-se o universo daqueles que se rendem à poesia.
E a poesia conta história, realiza sentidos, cumpre seu dever social: anuncia ou denuncia fatos, aglutina multidões e basta deixar a palavra falar, pois a leitura trabalha no silêncio do discurso fielmente, conduzindo-nos a um viajar pelas entrelinhas do verso. Nas palavras da poesia de Manoel de Barros até um vento pode ser roubado: “A mãe disse/ que carregar água na peneira/ Era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos. Nesse sentido de movimento, o poema mostra leveza no sabor dos dribles reais, subordinação de uma reinvenção que atravessa a palavra para dar forma e asas ao corpo da poesia.   E, é desse modo, que se seguem as palavras: ora vestindo a imagem e ora oferecendo sopro e alma aos conteúdos da ação dos poemas.

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
Que carregava água na peneira.
A mãe disse
Que carregar água na peneira
Era o mesmo que roubar um vento e sair
Correndo com ele para mostrar aos irmãos.


As palavras cumprem seu papel – O menino que carregava água na peneira e A menina avoada –  nos fazem mergulhar  no imaginário infantil e, ao mesmo tempo, nos revelar todo um lirismo que está por trás daquilo que podemos dizer ser a inocência que cabe na poesia.  E é com essa inocência colorida de lembranças da infância que o escritor tinge as palavras e as torna mais ricas em sua travessia através da linguagem poética.

Para reafirmar o exercício da escrita, trago à tona as palavras de Marguerite Duras: Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e a encantou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca.[2] A função do escriba se abre em possibilidades como produto de linguagem, sobretudo, como reflexão da criação literária, resultado e testemunho de um processo social como porta-voz de cultura. Como afirma o autor Manoel de Barros “ É preciso transver o mundo. A razão nos descompleta.” (do livro Sobre o Nada)

A literatura é uma arte que se revela nas coisas vistas, sabidas ou intuídas, além de apresentar encantamentos ela é representação de múltiplas faces do cotidiano. Os discursos literários se manifestam como estratégias de possibilidades e de experiências que podem ser apreendidos através da prática da leitura e essa é uma das funções de grande relevância e mais representativa da sociedade. Através da leitura o homem se reconhece no mundo, amplia seu dever de cidadão, concebe os bons exemplos de ética,  não só pela função de ler mas também no ato de escrever. Escrever denota compromissos, sobretudo, pelo cumprimento do dever social que o intelectual assume com a sociedade. Diante dessa concepção, o escritor procura desempenhar tal responsabilidade de “ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para um público.”[3]


Amigos leitores, eu li Exercícios de Ser Criança e me permiti viajar na fantasia de ser feliz com poesias, porque gosto das palavras. E A única palavra que me devora é aquela que meu coração não diz[4].





[1] CANDIDO, Antonio. A Educação pela Noite. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006.

[2] DURAS, Marguerite. Escrever. Tradução de Rubens Figueiredo, Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
[3] SAID, Edward W. Representações do intelectual: As Conferências Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum, São Paulo, Companhia das Letras, s.d.
[4] Sueli Costa e Abel silva, “Jura Secreta”