“Quero para mim o
espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver
não é necessário; o que é necessário é criar.”
(Fernando Pessoa)
Eu e meus escritos e os múltiplos
de mim: na poesia, às vezes sou uma jovem quase adolescente, em outros
momentos, sou uma senhora recatada e, até certo ponto, às vezes, chata, prolixa,
procurando a palavra certa, aquela que melhor se encaixe no verso. Mas não se
iludam que termine por aí o arsenal de fantasmas que habitam em mim. Nesta
conversa podem até pensar que me revelo; enganos mil. Nenhuma forma retrata o
perfil dessas vozes que se fazem passar ao narrar por mim. Enquanto escrevo,
uma delas “finge” ser quem sou e o que sou nem eu mesma sei. Sei que, em apenas
alguns instantes, uma outra mulher estará presente neste escrito, bem parecida
com aquela que você já leu, mas, não é ela. Tal como as águas de um rio que
passa veloz mudando sua história, assim sou eu em cada escrito. E não sou eu quem
muda e, sim, a própria história.
Diante do computador, olhando a
tela, me vem à mente a professora, a terapeuta, a pesquisadora, a mãe dedicada
entre outras tantas. Porém, todas questionando sempre às coisas da vida. Mas
nem todas tem o mesmo perfil. No mesmo conjunto dessas muitas que sou, existe
uma muito forte que, por vezes, divide o mesmo lugar habitado pela a mais fraca
ao se deixar vencer pela depressão. Depressão? Sim! Depressão, como algo “sistêmico”
como sintomas da modernidade.Graham Greene disse: “Às
vezes cogito como é que todos os que não
escrevem, não compõem ou não pintam conseguem escapar da loucura, da
melancolia, do pânico inerente à condição humana.”[1] Por
isso, escrevo e não se espante com a depressão. Ela pertence àquelas pessoas
pensantes, preocupadas com o rumo das coisas e da vida cotidiana. E são elas criaturas
sem rosto, porém, diversificadas e de múltiplas castas: ricas e pobres, de
variadas profissões, são artistas, são escritoras, são desenhistas e elas são
assim, as multifaces de um só fazer. E aqui convivem muitas de mim até que algo
aconteça.
Bem, até aqui só mostrei pedaços dessas
múltiplas que já são conhecidas de vocês no gênero da poesia. Mas ainda há muito
mais de mim, espalhados pelos meus escritos. Por exemplo, na escrita dos contos
existe uma vestimenta peculiar para cada uma das personagens e, como são
poucas, posso lhes emprestar uma interessante linguagem e ainda lhe oferecer
uma identidade jovem de alma romântica por trocar juras de amor infinitamente.
Enquanto que nas crônicas a mesma cena já não acontece e o mesmo se dá nos
ensaios, pois aí surge um outro “eu” bem mais crítico e politizado, mais
consciente da realidade e nesta hora, exalta-se uma mulher questionadora,
ativa; quase engajada nas questões sociais.
E ainda existe um romance, porém,
(inédito) e com uma temática bastante surpreendente aparentemente e que nada tem
a ver com o que sou e gosto. O romance em questão é carregado de linguagens policialescas,
o que contraria a minha forma literária de escrever. No projeto inicial a
escrita pretendia vir a ser um objeto de estética social cheio de aventuras
juvenis, relatando fatos de um ambiente regional. De repente, ao meio do
caminho da escrita, surge uma vertente modificando o tom e o clímax do romance,
contrariando o estilo que a minha sensibilização e vocação haviam se emprestado
ao texto. A partir desse momento, a escrita passou então a exibir uma linguagem
de suspense – recheada de confissões – e isto gerou em mim uma tremenda
confusão, levando-me à desistência de continuar escrevendo sobre coisas que não
gosto de ver e de sentir. Fiz uma
baita força para trabalhar uma narrativa dotada de características leves e emocionais,
mas não deu muito certo. Por mais que eu fugisse do rumo da linguagem de crimes
mais enrolada, a trama se vestia e se enaltecia de uma convicção tão real, exercendo
uma linguagem independente da minha vontade. Então, parei de escrever. Mas,
para surpresa minha e, possivelmente, de todos que me leem, não consegui me
distanciar da linguagem do crime e da violência. Isto porque eu queria fugir à
linguagem policial, pois, sem que eu quisesse, uma força estranha tomava para
si o rumo da escrita. Mas fiquem tranquilos. Por saber que foi em vão toda essa
tentativa, apossei-me dos conhecimentos literários e tudo que eu pudesse lançar
mão para conduzir você, leitor, a esses labirintos que não foram tramados por
mim oficialmente, mas que nele conterá uma surpresa agradável, para isso bastará
lê-lo até o fim. Entretanto, certa de que a escrita teria de convencer, através
das ações propostas com seus elementos que caracterizariam os tipos de
personagens, tentei buscar uma saída que
me levasse a transitar mais confortavelmente pela obra: coloquei na boca de uma
personagem, palavras da poesia, exaltando uma poeta muito à frente de seu tempo
(eis um outro livro, dentro do livro). Claro que não foi fácil.
De acordo com tal visão, delimitei os fatos do dia a dia,
compatíveis com a do cenário explícito demograficamente, para abrigar o enredo
e a trama do romance. Assim, desse modo, não pude mudar o clímax de suspense
da narrativa, mas pude dar ao romance uma nova
energia e fazer o texto obedecer à voz que narrava os poemas. Agora, deixo você
leitor, fazer suas próprias descobertas
ao longo da história junto com cada personagem.
Iniciei este escrito para falar dos múltiplos de mim. Assim
sendo, quer sejam na poesia, no conto ou nas crônicas, a linguagem
sempre será única naquele instante, tal como as águas de um rio. De acordo com
Heráclito Não cruzarás
o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele. Desse modo, vive a “população” dos meus escritos, perpetuando-se e se fazendo
significar naquilo que produz durante a sua transição. E ainda segundo
Heráclito: Tudo flui, nada persiste nem
permanece o mesmo. Portanto, não se
surpreendam se por acaso uma senhorinha bem velhinha se apresentar como
uma jovem e, num outro momento, a mesma
“criatura” parecer mais idosa e agir de tal forma que venha a ser uma criança. Não
se trata de senilidade, nem insanidade – isto é arte e, portanto, as recebam
todas com suas aventuras – pois, em cada uma, há um todo e em todas elas estarão
presentes um pedaço de mim, compartilhando emoções e semelhanças.
Demonstrei até aqui o mundo criativo que
existe em cada escritor. Um certo modo de “confessar”, tal como a temática do meu
romance – confissões, onde a protagonista faz alusão à narrativa para os atos
de confessar. Esses momentos de criação podem até parecer repetitivos, pois
fazem parte da arte de escrever e não importa o quê. Daí, a necessidade de ser múltiplos, de
comungar verdades e mentiras, de ser o rei ou a rainha, de viver o amor ou a
decepção. E, assim, ser mil em um ao exibir possíveis cenas de convivências, de
comunhão e de hábitos em suas diversidades.
Eis aqui uma dúzia de mim
esperando por outras oportunidades para se multiplicar em tantas mais: criança,
adolescente, jovem, madura, meia idade e velha, porém, feliz.
[1] SOLOMON,
Andrew. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. Rio de Janeiro;
Objetiva, 2002, p. 12.
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