quarta-feira, 6 de julho de 2016

Os múltiplos de mim

“Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar.”
(Fernando Pessoa)


Eu e meus escritos e os múltiplos de mim: na poesia, às vezes sou uma jovem quase adolescente, em outros momentos, sou uma senhora recatada e, até certo ponto, às vezes, chata, prolixa, procurando a palavra certa, aquela que melhor se encaixe no verso. Mas não se iludam que termine por aí o arsenal de fantasmas que habitam em mim. Nesta conversa podem até pensar que me revelo; enganos mil. Nenhuma forma retrata o perfil dessas vozes que se fazem passar ao narrar por mim. Enquanto escrevo, uma delas “finge” ser quem sou e o que sou nem eu mesma sei. Sei que, em apenas alguns instantes, uma outra mulher estará presente neste escrito, bem parecida com aquela que você já leu, mas, não é ela. Tal como as águas de um rio que passa veloz mudando sua história, assim sou eu em cada escrito. E não sou eu quem muda e, sim, a própria história.

Diante do computador, olhando a tela, me vem à mente a professora, a terapeuta, a pesquisadora, a mãe dedicada entre outras tantas. Porém, todas questionando sempre às coisas da vida. Mas nem todas tem o mesmo perfil. No mesmo conjunto dessas muitas que sou, existe uma muito forte que, por vezes, divide o mesmo lugar habitado pela a mais fraca ao se deixar vencer pela depressão. Depressão? Sim! Depressão, como algo “sistêmico” como sintomas da modernidade.Graham Greene disse: “Às vezes cogito como é  que todos os que não escrevem, não compõem ou não pintam conseguem escapar da loucura, da melancolia, do pânico inerente à condição humana.”[1] Por isso, escrevo e não se espante com a depressão. Ela pertence àquelas pessoas pensantes, preocupadas com o rumo das coisas e da vida cotidiana. E são elas criaturas sem rosto, porém, diversificadas e de múltiplas castas: ricas e pobres, de variadas profissões, são artistas, são escritoras, são desenhistas e elas são assim, as multifaces de um só fazer. E aqui convivem muitas de mim até que algo aconteça.

 Bem, até aqui só mostrei pedaços dessas múltiplas que já são conhecidas de vocês no gênero da poesia. Mas ainda há muito mais de mim, espalhados pelos meus escritos. Por exemplo, na escrita dos contos existe uma vestimenta peculiar para cada uma das personagens e, como são poucas, posso lhes emprestar uma interessante linguagem e ainda lhe oferecer uma identidade jovem de alma romântica por trocar juras de amor infinitamente. Enquanto que nas crônicas a mesma cena já não acontece e o mesmo se dá nos ensaios, pois aí surge um outro “eu” bem mais crítico e politizado, mais consciente da realidade e nesta hora, exalta-se uma mulher questionadora, ativa; quase engajada nas questões sociais.

E ainda existe um romance, porém, (inédito) e com uma temática bastante surpreendente aparentemente e que nada tem a ver com o que sou e gosto. O romance em questão é carregado de linguagens policialescas, o que contraria a minha forma literária de escrever. No projeto inicial a escrita pretendia vir a ser um objeto de estética social cheio de aventuras juvenis, relatando fatos de um ambiente regional. De repente, ao meio do caminho da escrita, surge uma vertente modificando o tom e o clímax do romance, contrariando o estilo que a minha sensibilização e vocação haviam se emprestado ao texto. A partir desse momento, a escrita passou então a exibir uma linguagem de suspense – recheada de confissões – e isto gerou em mim uma tremenda confusão, levando-me à desistência de continuar escrevendo sobre coisas que não gosto de ver e de sentir. Fiz uma baita força para trabalhar uma narrativa dotada de características leves e emocionais, mas não deu muito certo. Por mais que eu fugisse do rumo da linguagem de crimes mais enrolada, a trama se vestia e se enaltecia de uma convicção tão real, exercendo uma linguagem independente da minha vontade. Então, parei de escrever. Mas, para surpresa minha e, possivelmente, de todos que me leem, não consegui me distanciar da linguagem do crime e da violência. Isto porque eu queria fugir à linguagem policial, pois, sem que eu quisesse, uma força estranha tomava para si o rumo da escrita. Mas fiquem tranquilos. Por saber que foi em vão toda essa tentativa, apossei-me dos conhecimentos literários e tudo que eu pudesse lançar mão para conduzir você, leitor, a esses labirintos que não foram tramados por mim oficialmente, mas que nele conterá uma surpresa agradável, para isso bastará lê-lo até o fim. Entretanto, certa de que a escrita teria de convencer, através das ações propostas com seus elementos que caracterizariam os tipos de personagens, tentei  buscar uma saída que me levasse a transitar mais confortavelmente pela obra: coloquei na boca de uma personagem, palavras da poesia, exaltando uma poeta muito à frente de seu tempo (eis um outro livro, dentro do livro). Claro que não foi fácil.

De acordo com tal visão, delimitei os fatos do dia a dia, compatíveis com a do cenário explícito demograficamente, para abrigar o enredo e a trama do romance. Assim, desse modo, não pude mudar o clímax de suspense da narrativa, mas pude dar ao romance uma nova energia e fazer o texto obedecer à voz que narrava os poemas. Agora, deixo você  leitor, fazer suas próprias descobertas ao longo da história junto com cada personagem.

Iniciei este escrito para falar dos múltiplos de mim. Assim sendo, quer sejam na poesia, no conto ou nas crônicas, a linguagem sempre será única naquele instante, tal como as águas de um rio. De acordo com Heráclito Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele. Desse modo, vive a “população” dos meus escritos, perpetuando-se e se fazendo significar naquilo que produz durante a sua transição. E ainda segundo Heráclito: Tudo flui, nada persiste nem permanece o mesmo. Portanto, não se surpreendam se por acaso uma senhorinha bem velhinha se apresentar como uma jovem e,  num outro momento, a mesma “criatura” parecer mais idosa e agir de tal forma que venha a ser uma criança. Não se trata de senilidade, nem insanidade – isto é arte e, portanto, as recebam todas com suas aventuras – pois, em cada uma, há um todo e em todas elas estarão presentes um pedaço de mim, compartilhando emoções e semelhanças.

 Demonstrei até aqui o mundo criativo que existe em cada escritor. Um certo modo de “confessar”, tal como a temática do meu romance –  confissões, onde a protagonista faz alusão à narrativa para os atos de confessar. Esses momentos de criação podem até parecer repetitivos, pois fazem parte da arte de escrever e não importa o quê.  Daí, a necessidade de ser múltiplos, de comungar verdades e mentiras, de ser o rei ou a rainha, de viver o amor ou a decepção. E, assim, ser mil em um ao exibir possíveis cenas de convivências, de comunhão e de hábitos em suas diversidades.

Eis aqui uma dúzia de mim esperando por outras oportunidades para se multiplicar em tantas mais: criança, adolescente, jovem, madura, meia idade e velha, porém, feliz.


[1] SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: Uma anatomia da depressão. Rio de Janeiro; Objetiva, 2002, p. 12.

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