sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A SOLIDÃO DO FAROL





Mar, mar e mar. Águas salgadas, por-do-sol, veleiros e faróis são os ingredientes mágicos e os elementos de transformação do fictício que residem na imaginação do artista, para ser manifestação ideal do real, através da palheta alquímica do pintor.

O que faz do artista ser um pintor?  E priorizar em suas idealizações uma forma de arquitetura como os faróis?  Eu não tenho resposta para tal pergunta. Talvez o homem e a obra de arte sejam uma “coisa só”, unidos numa espécie de fusão‑andrógina capaz de resgatar do imaginário, através do processo simbiótico e, de lá, deixar nascer o “filho de sua construção”: a obra de arte.

Assim, os faróis nascem emergidos das profundezas oceânicas, iluminando ou iluminados de por‑do‑sol. E lá sempre estão eles como ícones sinalizadores e solitários: altos, opacos ou coloridos; tristes ou alegres, mas altamente ativos em suas funções. Atentos em sua solidão, marcando o ponto de chegada e o princípio da partida. Um olhar para os que se encontram perdidos, um olhar piscando na escuridão da noite, anunciando a esperança e o caminho. Imerso em total solidão e refletindo o silêncio como quem exibe sua ambivalência, vive o farol cumprindo seu papel. Porém, na tela do imaginário de quem escreve ou pinta; o farol também reflete luz.

Desse modo, o artista cria  imagens que irão vestir de solidão a alma  feliz do farol. Tinge-o com as mais belas tintas; glorifica-o como um estandarte e dá-lhe a imponência de ser ele um ser exuberante. Assim sendo, o objeto de arte segue sinalizando a procura que  aponta para o alvo ao mesmo instante em que ascende  para o inesperado desejo do encontro. E, na condição de um pirilampo orientador, cumpre o farol seu real e fiel papel: ser sempre o solitário da vigília na densa escuridão da noite. E o farol vive no ritual de sua função, mergulhado no breu do mar, sendo quase  um mito de adoração, erguido como figura limite no infinito distante de fixos olhares. Neste instante, vê-se a luz  no final do túnel.

Será o farol o espelho refletido que a mão sonhadora do artista teima em ver materializado em sua ficção imaginária? Ou será a obra de arte que se faz pronta como construção arquetípica ao se constituir no próprio ser da arte? A expressão de criação  artística surge do transbordamento da  consagração do pintor. Esta é a paixão que o objeto de arte desperta em todos os olhares fortes; e refletindo imaginações figuram como lentes onde  não caberão análises, nem palavras que possam definir a estreita conexão entre a manifestação e a intenção que leva artistas e suas obras a se fundirem em tais convergências semânticas.

 Aí está uma simples relação no âmbito social dessa reunificação, homem e arte, sujeito e objeto: indissoluvelmente ligados. Esta é a fusão simbólica e de comunicação mítica.

 Assim sendo, antropólogos, psicanalistas e semiólogos se debruçam sobre essa semântica que fundamenta o dinamismo organizador da imagem como força modelar de representação da realidade caótica em uma desordem‑organizadora. A criatividade tenta dar conta do fenômeno da obra de arte; mesmo que esta  flutue. Mas, segundo o artista, ele expressa as tendências sociais de seu tempo consciente ou inconscientemente. Porém, as formas de expressão irão encontrar sua função mais autêntica, quando são atingidas pelo desafio do enfrentamento cotidiano, com os limites do saber tácito desembocando para além do saber artístico.

O processo criativo simboliza, sobretudo, a significação com a restauração  do encontro da unidade com a divindade – Eros e Tânatos – que  coexistem e convivem nesse ponto primordial. Essa fusão que se dá no encontro mítico, metáfora precária que pretende subordinar o sublime instante do “ato de criação”, traça o perfil imaginário, onde  um nasce do outro  e, assim, se fazem   ser e criador – do  objeto de arte, processo de uma metáfora  que se plasma como realidade do ato de criação.

E o farol está lá, nas águas temperadas das ninfas de sol e mar, do sal e das alvoradas. Mas as minhas palavras estão aqui.  Porém, se mais quiserem  saber, hão de mergulhar na plasticidade de muitos aventureiros que se perderam em mares de outrora. Mas, se ainda persistirem, hão de encontrar construtores, artistas, escritores, usando a solidão dos faróis para neles e com eles se encontrarem. Portanto, ofereço-lhes mil e um faróis para serem lidos em poesias, contos e crônicas ou nas telas, cujas palhetas em aquarelas, tentarão exprimir o indizível de qualquer olhar que queira ver e sentir a solidão feliz do farol.
 
Fonte:
SANTANA, Vannda. O avesso e reverso na ponta da pena.  Oficina Editores, Rio de Janeiro, 2007.

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