A criatividade como impulso libertador
Por:
Vannda Santana
Revisão:
Márcia Vital
27/01/2017
“Não
darei inicialmente uma revisão histórica e mostrarei o desenvolvimento das
minhas ideias a partir das teorias dos outros, porque minha mente não funciona
deste modo. O que acontece é que eu coleciono isto e aquilo, aqui e acolá,
vinculo-me à minha experiência clínica, formo minhas próprias teorias e depois,
no final, passo a me interessar em verificar o que eu roubei de quem. Talvez
este método seja tão bom quanto qualquer outro”.
D.W.Winnicott – Primitive Emotional Development.
Ao escrever este artigo, meu
pensamento paira sobre as formas de analisar o brincar tal como um método em que a “A criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista” –
e este critério, sem dúvida, trabalhado com o rigor da observação pelo médico D.W.
Winnicott, em seu livro, deixou-nos a certeza de uma herança psicopedagógica –
entender o brincar nas diferentes fases da vida.
Assim, “O Brincar e a
Realidade”, protagonizado pelo médico pediatra
e psicanalista, declara a importância
da observação durante as sessões de
análises que tanto puderam contribuir para a vida de pais e mães e, sobretudo,
para a vida das da crianças em desenvolvimento. Penso que coube a ele entender
o desenvolvimento infantil mediante o olhar atento do psicanalista que
relaciona a brincadeira com a sublimação, visto que o brincar é parte de uma
fantasia a qual se sustenta pela própria
fantasia oculta internamente no indivíduo. E esta é uma tarefa do analista
de crianças: interpretar a fantasia. Até então, a brincadeira em si era uma
coisa sem muita importância para a psicanálise, enquanto que o brincar winnicottiano tem uma topologia e
uma temporalidade. O espaço que o brincar ocupa não fica dentro nem tampouco
fora da subjetividade, fica na fronteira.[1] O
autor propõe algo inovador ao olhar para o ato do brincar e confere a este (brincar)
o que sua observação produziu em seu método de análise como objeto de estudo. Diferente
de Melaine Klein que vê a brincadeira de crianças como uma forma de comunicação,
onde o ato de brincar é só mais uma tarefa do fazer analítico de cada sessão, enquanto
que, na visão winnicottiana, o processo constitui uma realidade vivenciada pela
experiência clínica, aferindo mais profundamente a prática da psicoterapia que
não se limita apenas às crianças, mas inserindo também os adultos.
Ficamos com as palavras de
Winnicott:
A psicoterapia se efetua na sobreposição de
duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de
duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é
possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de
trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em
que o é.[2]
Portanto, reler a obra de Winnicott, nos
aponta para um novo olhar à realidade e às formas do “brincar” como algo
significante sendo representado pelo objeto em uso através do relacionamento
das identificações. Particularmente, percebi
em meus estudos, um certo encantamento com os princípios fenomenológicos adotados
pela investigação do psicanalista.
Desse modo, o livro, “O Brincar e a Realidade”, passou a fazer parte dos meus instrumentos
teóricos, não tão somente nos cursos de pós-graduação em psicopedagogia clínica
em que eu atuava como professora, mas também no consultório e na clínica com os
pais, oferecendo a eles, de certo modo, uma nova oportunidade de se verem e se auto
avaliarem no enfrentamento do cotidiano diante de seus filhos. Essa visão
requer a necessidade de um novo interpretar a realidade das crianças e o livro
nos aponta para a leveza de nos fazer ver a vida imaginativa das crianças que
se amplia como experiência cultural, o que nos parece ser um fator determinante em sua teoria
ao analisar a capacidade individual das crianças em viverem criativamente. Por
outro lado, amplia-se a complexidade no campo da observação direta e da
investigação indireta, dos “objetos transicionais” que ocorrem na prática de
uma exploração clínica efetuada pela avaliação do material clínico em conjunto
– sutilezas vivenciadas pela relação
mãe-bebê no processo analítico – formando
significação e sentido com a análise do fenômeno das ações do brincar.
A criatividade, segundo Winnicott, deve impulsionar
o ser humano em toda fase da vida; qualquer
pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira
saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira
com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical. O
autor, com sua teoria, nos coloca frente ao impulso criativo como sendo algo
universal e, com base na psicanálise, postula a ideia, diferenciando criatividade de criação.
Winnicott exemplifica o postulado de que a criação pode ser um quadro, uma casa, um
jardim, um vestido, um penteado, uma sinfonia ou uma escultura; essas coisas
poderiam ser criações (...). A criatividade que me interessa aqui é uma
proposição universal. (Winnicott,
1975 p. 99 -100).
Com base no impulso criativo
“o brincar” não se limita à submissão humana, pois a criatividade ultrapassa o
contorno de possíveis barreiras inconscientes. É sabido que, em alguma parte da
psique humana, pode ocultar-se uma vida secreta satisfatória com qualidade
original e criativa e, que, por outro lado, pode também permanecer uma
insatisfação em virtude daquilo que está oculto e que, pela mesma razão,
necessita vir à tona. O impulso criativo reflete o instante de expressão
primordial da vivência de cada indivíduo, deixando escapar aquilo que seria o
objeto de insatisfação. É através da apercepção criativa, mais do que
qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.
Através da análise do
brincar, constata-se um simbolismo que possibilita à criança transferir não
apenas interesses, mas todas as suas fantasias, desde objetos e ansiedades, além de culpas para
outras pessoas. Portanto, o ato de brincar é um processo libertador,
possibilitando a criatividade no brincar. Desse modo, podemos pensar que a criatividade
seria um viés de sublimação; uma prática comum encontrada pela criança ao
colocar suas pulsões à mostra, expostas pela via dos objetos socialmente
valorizados. Nesse contexto, avalia-se a
importância do desenvolvimento psíquico e a formação de símbolos analisados por
Winnicott, possivelmente, o primeiro pós-freudiano a se debruçar sobre a realidade
temática da criatividade, objetivando sistematizar de forma profunda seu objeto
de estudo e de análise.
Durante a análise
infantil, os instrumentos e os conteúdos seriam o ato, o belo, o mágico e o
criativo, além do processo de significação e de surpresa que se expõem diante
da própria criação no setting analítico, produzindo efeitos significativos,
aliados à interpretação do analista. "Interpretar fora do
amadurecimento do material é doutrinação e produz submissão. Em consequência, a
resistência surge da interpretação dada fora da área da superposição do brincar
em comum de paciente e analista" (Winnicott).
Na introdução de O brincar e a realidade (WINNICOTT,
1975), o autor chama a atenção para um
paradoxo, referindo aos fenômenos transicionais e espaços potenciais. Ele lança
uma certa crítica aos hábitos e ao modo
de uma cultura que se estabelece em torno da vida dos bebês tais como o uso dos
ursinhos e outros objetos, produto de um certo intelectualismo:
Minha
contribuição é solicitar que o paradoxo seja aceito, tolerado e respeitado, e
não que seja resolvido. Pela fuga para o funcionamento em nível puramente
intelectual, é possível solucioná-lo, mas o preço disso é a perda do valor do
próprio paradoxo. (WINNICOTT, 1975, p. 10)
Vimos que, para Winnicott,
o ato de brincar é uma atividade onde se
manifesta uma ação de liberdade, de criação, tanto da criança, quanto do
adulto, ou seja, essa “liberdade” situa-se num espaço que não é nem o da
realidade psíquica nem o da realidade externa, mas sim num espaço potencial
existente entre a mãe e o bebê - o transicional. Portanto, o brincar e ser
criativo no trabalho analítico seriam sinônimos, extensões de um mesmo
processo. Brincar como experiência, sempre da ordem criativa, uma experiência
na continuidade espaço-tempo.
Criatividade ou impulso
criativo?
Penso que o impulso criativo esteja presente
na ação do arquiteto ao escolher o material necessário para dar forma ao mundo
que deseja transformar; assim como, esteja na partitura do músico, através da
melodia que deseja atravessar fronteiras e se fazer ouvir pela harmonia
universal; esteja também na vida do artista escultor e pintor; pelas mesmas
condições de impulsos criativos. Ou seja, os matizes de uma paleta mágica podem colorir a vida de
PESSOAS e de coisas. E a vida de pessoas necessita de arte que se pronuncia
através de objetos e, desse modo, as formas e os conteúdos criativos inimagináveis, acrescentados dos
processos psicanalíticos vão muito além do que se pode alcançar.
O trabalho de Winnicott nos aponta para esse
saber sobre O brincar e a realidade, reafirmando
ações, elucidando formas de interatividade psíquica entre objetos e pessoas,
mostrando nesse enunciado de registros escritos o universo que se oferece como um
amplo argumento de análises e que, sem dúvida, se abre para experiências e
vivências, norteando-as sob o olhar da psicanálise observacional ao exigir um
rigor sistêmico de leituras.
Visto assim, a experiência
do médico-pediatra e psicanalista, nos conduz a uma bela viagem pelo “O brincar
e a realidade”, onde o guia, nosso
mestre Winnicott, acena para os perigos de uma infância em desenvolvimento
inadequado, mostrando-nos o perigo de um labirinto que ronda a vida das
crianças e a importância da psiquiatria infantil.
Hoje, como psicanalista e
arteterapeuta, refaço meu pensamento ancorando ideias sobre o desenvolvimento
da criança e suas implicações na educação, revendo atitudes que possam aliar
conceitos de forma lúdica e saudável para um melhor aprendizado.
Assim, a vida e a arte
podem juntas se manifestar através do impulso criativo. E sabemos que “Cada um
tem o dom de ser capaz”.
[1]W. D. WINNICOTT. O Brincar e a Realidade.
1 O brincar e a experiência analítica:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982003000100003
[2]O Brincar
e a Realidade. D. W.
Winnicott, p.59. Imago EditoraLTDA. Rio de Janeiro