segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A criatividade como impulso libertador

A criatividade como impulso libertador


Por: Vannda Santana
Revisão: Márcia Vital
27/01/2017





“Não darei inicialmente uma revisão histórica e mostrarei o desenvolvimento das minhas ideias a partir das teorias dos outros, porque minha mente não funciona deste modo. O que acontece é que eu coleciono isto e aquilo, aqui e acolá, vinculo-me à minha experiência clínica, formo minhas próprias teorias e depois, no final, passo a me interessar em verificar o que eu roubei de quem. Talvez este método seja tão bom quanto qualquer outro”.
D.W.Winnicott – Primitive  Emotional Development.


Ao escrever este artigo, meu pensamento paira sobre as formas de analisar o brincar tal como um método em que a “A criação se ergue entre o observador e a criatividade do artista” – e este critério, sem dúvida, trabalhado com o rigor da observação pelo médico D.W. Winnicott, em seu livro, deixou-nos a certeza de uma herança psicopedagógica – entender o brincar nas diferentes fases da vida.

Assim, “O Brincar e a Realidade”,  protagonizado pelo médico pediatra e psicanalista,  declara a importância da  observação durante as sessões de análises que tanto puderam contribuir para a vida de pais e mães e, sobretudo, para a vida das da crianças em desenvolvimento. Penso que coube a ele entender o desenvolvimento infantil mediante o olhar atento do psicanalista que relaciona a brincadeira com a sublimação, visto que o brincar é parte de uma fantasia a qual se sustenta pela própria  fantasia oculta internamente no indivíduo. E esta é uma tarefa do analista de crianças: interpretar a fantasia. Até então, a brincadeira em si era uma coisa sem muita importância para a psicanálise, enquanto que o brincar winnicottiano tem uma topologia e uma temporalidade. O espaço que o brincar ocupa não fica dentro nem tampouco fora da subjetividade, fica na fronteira.[1] O autor  propõe algo inovador ao olhar  para o ato do brincar e confere a este  (brincar) o que sua observação produziu em seu método de análise como objeto de estudo. Diferente de Melaine Klein que vê a brincadeira de crianças como uma forma de comunicação, onde o ato de brincar é só mais uma tarefa do fazer analítico de cada sessão, enquanto que, na visão winnicottiana, o processo constitui uma realidade vivenciada pela experiência clínica, aferindo mais profundamente a prática da psicoterapia que não se limita apenas às crianças, mas inserindo também os adultos.
Ficamos com as palavras de Winnicott:

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é.[2]

 Portanto, reler a obra de Winnicott, nos aponta para um novo olhar à realidade e às formas do “brincar” como algo significante sendo representado pelo objeto em uso através do relacionamento das identificações. Particularmente,  percebi em meus estudos, um certo encantamento com os princípios fenomenológicos adotados pela investigação do psicanalista.
 Desse modo, o livro,  “O Brincar e a Realidade”,   passou a fazer parte dos meus instrumentos teóricos, não tão somente nos cursos de pós-graduação em psicopedagogia clínica em que eu atuava como professora, mas também no consultório e na clínica com os pais, oferecendo a eles, de certo modo, uma nova oportunidade de se verem e se auto avaliarem no enfrentamento do cotidiano diante de seus filhos. Essa visão requer a necessidade de um novo interpretar a realidade das crianças e o livro nos aponta para a leveza de nos fazer ver a vida imaginativa das crianças que se amplia como experiência cultural, o que nos  parece ser um fator determinante em sua teoria ao analisar a capacidade individual das crianças em viverem criativamente. Por outro lado, amplia-se a complexidade no campo da observação direta e da investigação indireta, dos “objetos transicionais” que ocorrem na prática de uma exploração clínica efetuada pela avaliação do material clínico em conjunto – sutilezas  vivenciadas pela relação mãe-bebê no processo analítico –  formando significação e sentido com a análise do fenômeno das ações do brincar.
 A criatividade, segundo Winnicott, deve impulsionar o ser humano em toda fase da vida; qualquer pessoa – bebê, criança, adolescente, adulto ou velho – se inclina de maneira saudável para algo ou realiza deliberadamente alguma coisa, desde uma sujeira com fezes ou o prolongar do ato de chorar como fruição de um som musical. O autor, com sua teoria, nos coloca frente ao impulso criativo como sendo algo universal e, com base na psicanálise, postula a ideia, diferenciando criatividade  de criação.  Winnicott  exemplifica o postulado de que a criação pode ser um quadro, uma casa, um jardim, um vestido, um penteado, uma sinfonia ou uma escultura; essas coisas poderiam ser criações (...). A criatividade que me interessa aqui é uma proposição universal. (Winnicott, 1975 p. 99 -100). 
 Com base no impulso criativo “o brincar” não se limita à submissão humana, pois a criatividade ultrapassa o contorno de possíveis barreiras inconscientes. É sabido que, em alguma parte da psique humana, pode ocultar-se uma vida secreta satisfatória com qualidade original e criativa e, que, por outro lado, pode também permanecer uma insatisfação em virtude daquilo que está oculto e que, pela mesma razão, necessita vir à tona. O impulso criativo reflete o instante de expressão primordial da vivência de cada indivíduo, deixando escapar aquilo que seria o objeto de insatisfação. É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.
Através da análise do brincar, constata-se um simbolismo que possibilita à criança transferir não apenas interesses, mas todas as suas fantasias, desde  objetos e ansiedades, além de culpas para outras pessoas. Portanto, o ato de brincar é um processo libertador, possibilitando a criatividade no brincar. Desse modo, podemos pensar que a criatividade seria um viés de sublimação; uma prática comum encontrada pela criança ao colocar suas pulsões à mostra, expostas pela via dos objetos socialmente valorizados.  Nesse contexto, avalia-se a importância do desenvolvimento psíquico e a formação de símbolos analisados por Winnicott, possivelmente, o primeiro pós-freudiano a se debruçar sobre a realidade temática da criatividade, objetivando sistematizar de forma profunda seu objeto de estudo e de análise.
 Durante a análise infantil, os instrumentos e os conteúdos seriam o ato, o belo, o mágico e o criativo, além do processo de significação e de surpresa que se expõem diante da própria criação no setting analítico, produzindo efeitos significativos, aliados à interpretação do analista. "Interpretar fora do amadurecimento do material é doutrinação e produz submissão. Em consequência, a resistência surge da interpretação dada fora da área da superposição do brincar em comum de paciente e analista" (Winnicott).
 Na introdução de O brincar e a realidade (WINNICOTT, 1975), o autor  chama a atenção para um paradoxo, referindo aos fenômenos transicionais e espaços potenciais. Ele lança uma certa crítica aos hábitos e ao   modo de uma cultura que se estabelece em torno da vida dos bebês tais como o uso dos ursinhos e outros objetos, produto de um certo intelectualismo:

Minha contribuição é solicitar que o paradoxo seja aceito, tolerado e respeitado, e não que seja resolvido. Pela fuga para o funcionamento em nível puramente intelectual, é possível solucioná-lo, mas o preço disso é a perda do valor do próprio paradoxo. (WINNICOTT, 1975, p. 10)

Vimos que, para Winnicott,  o ato de brincar é uma atividade onde se manifesta uma ação de liberdade, de criação, tanto da criança, quanto do adulto, ou seja, essa “liberdade” situa-se num espaço que não é nem o da realidade psíquica nem o da realidade externa, mas sim num espaço potencial existente entre a mãe e o bebê - o transicional. Portanto, o brincar e ser criativo no trabalho analítico seriam sinônimos, extensões de um mesmo processo. Brincar como experiência, sempre da ordem criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo. 

Criatividade ou impulso criativo?

 Penso que o impulso criativo esteja presente na ação do arquiteto ao escolher o material necessário para dar forma ao mundo que deseja transformar; assim como, esteja na partitura do músico, através da melodia que deseja atravessar fronteiras e se fazer ouvir pela harmonia universal; esteja também na vida do artista escultor e pintor; pelas mesmas condições de impulsos criativos. Ou seja, os matizes de uma paleta mágica podem colorir a vida de PESSOAS e de coisas. E a vida de pessoas necessita de arte que se pronuncia através de objetos e, desse modo, as formas e os conteúdos  criativos inimagináveis, acrescentados dos processos psicanalíticos vão muito além do que se pode alcançar.

O trabalho de Winnicott nos aponta para esse saber sobre O brincar e a realidade, reafirmando ações, elucidando formas de interatividade psíquica entre objetos e pessoas, mostrando nesse enunciado de registros escritos o universo que se oferece como um amplo argumento de análises e que, sem dúvida, se abre para experiências e vivências, norteando-as sob o olhar da psicanálise observacional ao exigir um rigor sistêmico de leituras.
Visto assim, a experiência do médico-pediatra e psicanalista, nos conduz a uma bela viagem pelo “O brincar e a realidade”, onde o guia, nosso mestre Winnicott, acena para os perigos de uma infância em desenvolvimento inadequado, mostrando-nos o perigo de um labirinto que ronda a vida das crianças e a importância da psiquiatria infantil.

Hoje, como psicanalista e arteterapeuta, refaço meu pensamento ancorando ideias sobre o desenvolvimento da criança e suas implicações na educação, revendo atitudes que possam aliar conceitos de forma lúdica e saudável para um melhor aprendizado.

Assim, a vida e a arte podem juntas se manifestar através do impulso criativo. E sabemos que “Cada um tem o dom de ser capaz”.





[1]W. D. WINNICOTT. O Brincar e a Realidade.

[2]O Brincar e a Realidade. D. W. Winnicott, p.59. Imago EditoraLTDA. Rio de Janeiro

Nenhum comentário:

Postar um comentário