Revisão: Márcia Vital
“Não há civilização sem loucura […] ela
acompanha a humanidade por todo lugar que haja imposição de limites”.– Michel Foucault
Entender a loucura para compreender a humanidade ou vice e
versa? É nesse lugar de humanidade que se escondem as peripécias do poder social e da desumanização sem limites contra a classe feminina. Estamos
exaltando as Marias nossas de cada dia, aquelas mulheres incríveis que sabem
ser múltiplas quando necessário.
Este artigo não trata de
questões sobre o feminismo; ele nos leva à reflexão da existência de algumas
desigualdades “humanas” que atingiram, em maior parte, a existência das
mulheres. O texto é uma proposta reflexiva sobre um conceito literário e
mitológico da história, ao comparar a mulher ao mito.
Entretanto, recorrer ao
mito como traço de uma jornada feminina não significa debruçar sobre ideários
de discriminação nesta proposta. O texto é uma narrativa sem compromisso de
política partidária – não agrega conceitos radicais – ele visa atravessar fronteiras
do pensamento humano e atrelar-se à arte como fenômeno literário e de expressão
e, sobretudo, apontar para o alvo dos acontecimentos da história e da cultura em contínua
transformação. É nessa ordem de idéias que propomos aqui a leitura sobre a mulher no seu cotidiano como representante de um
tempo. Exaltar a coragem dessas mulheres de assumir o pecado como se fosse um
mal e ainda ter a ousadia de transgredir
todo o contexto cultural, o que, aos nossos olhos, parecia andar na
contramão civilizatória da história. Não queremos recorrer à Idade Média, muito
menos abdicar de conceitos intramuros da
existência.
Diante de uma breve reflexão, algumas discordâncias poderão surgir
como fluxos de ideias atemporais ao serem analisados os fatos históricos sobre
as mulheres e suas ações diante da contemporaneidade. Tal como o título sugere,
algumas mulheres, independente de suas
atividades profissionais, assumem, na lida do dia, as Marias necessárias para
dar conta da rotina que, nem sempre, cabe numa só mulher. E, não há uma
mensuração para dar conta de quantas mulheres seriam necessárias para abrigar
uma só Maria. Eis aí a grande loucura primordial daquela que sabe ser mulher.
“Ainda que simulem obedecer e optar pelo
vanguardismo dos costumes, as mulheres são rebarbativas às inovações. No fundo
da sua natureza, há um apelo ao primitivo, ao antigo, ao passado, ao já
experimentado e, sob esse aspecto, não há fantasias para elas”[i].
Este escrito, não pretende vir a
ser um relato histórico ou acadêmico. Ele visa compor um espaço
literário livre de marcos epocais e se
destina, tão somente, a apontar para um repensar o lugar da mulher na sociedade
contemporânea sem a submissão de ser “santa” e sem o estigma de não ser feminina.
Pois, é assim que grande parte das mulheres vive como prisioneiras da
sociedade. Ao contrário dos mitos, das mulheres de “papel” ficcionais, estamos
falando de mulheres reais de carne e osso. Mulheres que fazem de sua vida uma
história de vida e arte. Por isso, toda
mulher é uma artista e, por isso mesmo, também, um mito. E a maior de todas as artes
escultura-se em cada ação e em cada atributo no fazer de cada uma delas – um
louvor – ao desempenharem com galhardia o seu cotidiano. E elas são múltiplas, são tantas as Marias nossas de cada dia – Marias de todas as classes e de todas as cores
que colorem os nossos dias com seus vestidos estampados desbotados ou não. Em cada uma, um mito se fazendo valer, ora revelando identidades, ora dominando
angústias e sombras para deixar o riso nascer. E eis aí a arte que faz parte do
ser de toda mulher.
Carl Gustav Jung (1875-1961), foi um dos primeiros a se dedicar
e a encontrar na mitologia uma fonte de conhecimento e de inspiração. O
psiquiatra suíço através da psicologia analítica buscou nas divindades da mitologia grega e em
outros mitos religiosos associar características presentes no ser humano tais
como: a sabedoria, a coragem, a sensualidade,
entre outras qualidades, em maior ou menor grau.
Assim sendo, quando um mito era contado, as pessoas acreditavam
nele piamente de coração e alma. E, a partir da escuta, alguns indivíduos passavam
a se identificar com certos mitos, encontrando, assim, traços de semelhanças
com a sua "própria" história ou de alguém conhecido. Entretanto, somente
através das qualidades e da força dos deuses é que os gregos puderam alcançar
uma mudança interna que possibilitasse a presença de uma nova atitude,
principalmente nas qualidades atribuídas às deusas.
Desse modo, a crença nos mitos se debruçava sobre os muitos
atributos humanos encontrados nos deuses gregos, desde um comportamento físico
até as reações emocionais e, em muitos, podia-se notar traços na aparência
física. Assim, o estudo da mitologia veio nos proporcionar padrões de
conhecimentos bastante favoráveis a respeito do comportamento do homem, contribuindo
de forma significativa e reflexiva para os estudos simbólicos e psicológicos das
atitudes dos homens pela referência simbólica.
Segundo Jung, os atributos dos deuses e deusas continuam
presentes em nossas vidas como arquétipos
- modelos de comportamentos universais que servem a todas as pessoas. De acordo
com certas histórias, os mitos refletem a sabedoria humana, pois são adornados
de temas que abordam e fazem parte da herança da humanidade em sua
representação de imagens simbólicas. Desse modo, os mitos auxiliam na
elaboração e compreensão dos "papéis" sociais desenvolvidos pelos
cidadãos – quer seja nos relacionamentos familiares, entre os amigos, no dia a
dia do trabalho ou na prática do lazer – o ser humano pode assumir um desses
arquétipos em sua estrutura humana e poderá vivenciar uma certa influência simbólica, não menos
significativa de um desses deuses ou deusas, diante de um tipo de
relacionamento ou de uma atividade que seja escolhida para ser desempenhada. Assim,
os mitos evocam sentimentos e estimulam a imaginação humana, não importa o
gênero em questão.
Para agregar novas reflexões arquetípicas sobre algumas mulheres
míticas ou bíblicas, deixamos aqui algumas perguntas: o que conta a Bíblia e o que ela não conta sobre
Lilith? A história de Lilith nos parece
que se funde com a história de Eva, porém há evidências de que Lilith tenha
sido a primeira mulher. Os escritos cabalísticos e gnósticos informam que Adão
foi feito de poeira pura e Lilith de esterco e sedimento. Por não aceitar a
submissão, ela fugiu do Éden e foi habitar as sombras, tornando-se, assim, o
símbolo do feminino sombrio, da contestação, da não submissão e da rebeldia, da
independência e da autossuficiência.
De acordo com o texto Teoria
da Conspiração: Lilith a primeira mulher de Adão, há uma afirmação, onde autora faz analogia entre os textos sagrados
do livro da Bíblia, do Talmude e do Torá, como justificativa de conspiração:
No primeiro capítulo do livro
Gênesis, que faz parte da Torá e da Bíblia, Deus cria “homem e mulher” a sua
imagem e semelhança. Mas, logo no capítulo seguinte, somente Adão é mencionado.
Onde foi parar a mulher do primeiro capítulo? É só no segundo capítulo que Eva
é criada, e no terceiro que recebe seu nome. Essa inconsistência sugere que
parte do texto tenha sido editada ou removida. [ii]
Interessante notar a constatação da não
presença do nome de Lilith nesses registros sagrados. O que querem eles
ocultar? Que padrão de mulher eles querem formar? Uma “santa” de carne e osso
com total submissão? Ao desvelar o texto percebemos que há muito mais do que um
reino de opressores, há muito mais do
que um simples patriarcado exercendo um tal poder “sagrado” sobre o
feminino, onde as mulheres de então parecem ter parte com o “demo” e por isso
devem ser castigadas. Desse modo, percebemos que a teoria de que Lilith tenha sido “apagada da história” evidenciaria um processo de conspiração ou um
erro de edição. Porém, nada foi confirmado até hoje e tudo que temos, segundo essas
análises, nos remete simplesmente à figura folclórica de Lilith, como mera
suposição e sem credibilidade científica.
Ainda, segundo
pesquisadores, Lilith já estava lá
O registro mais antigo dessa
figura está nas gravuras dos amuletos de Arslan Tash, relíquias que datam do
século 7 a.C. Alguns historiadores argumentam ainda que Lilith é mencionada
ainda antes, na demonologia suméria do terceiro milênio a.C. Na Épica de
Gilgamesh, poema mesopotâmio de 2100 a.C., há uma possível menção a Lilith como
demônia. Ou seja,Lilith já era conhecida antes de compilarem o Gênesis, o que
reforça a teoria de que foi “apagada da história”.[iii]
No texto citado, discute-se à desmitificação sobre a figura da
mulher que ainda mantém o mito pela
tentação de Eva ao fazer Adão comer o fruto proibido, ocasionando, assim, a
expulsão de ambos do paraíso. Sabemos
que a partir daí, uma consciência foi estabelecida entre os dois – a diferença
de sexo e suas polaridades. Esta polaridade torna-se clara diante da necessidade de
combinação e complementaridade, remetendo-nos à perfeição inicial. Assim,
sendo, homens e mulheres estão, por assim dizer, inconscientemente, motivados
por essa busca – busca infinita de um pelo outro – visando à totalidade perdida,
neste caso, uma espécie de androgenia.
Ao concluir este artigo, considero relevante destacar a
importância de uma cumplicidade que se dá entre o autor e o leitor. Ainda que
ambos não saboreiem do mesmo prazer estético, da mesma safra filológica e do
mesmo símil, ainda assim, a escrita servirá de elo pela “transliteração da
fala”. O texto segue sua senda, composto
por palavras que podem atribuir um prazer que derive de um encontro mágico com um
significante qualquer ou com a extravagância de algum sentido. É dessa forma
que as palavras ganham asas e, através delas, me convenço de que o texto
escrito seja um veículo de comunicabilidade entre o escritor e o leitor. Por
isso, escrevo pelo prazer da sedução que a palavra exerce. Escrever é mais que
um sintoma, é uma “euforia”, enquanto que o ato de ler resulta numa
“embriaguez”, consequência da euforia.
Desse modo, ofereço aos meus companheiros de estrada (meus
leitores) a minha reflexão. Compartilho
pensamentos, intencionando troca de ideias. Ao comungar este símil, deixo explícita a
pretensão futura de nos encontrarmos pelos caminhos de outras abordagens. Neste
“tecido” segue a imaginária malha da subjetividade – a de que a psicanálise
seja avessa à compreensão, embora tudo esteja no limiar do desejo.
Fonte:
Saber Fazer com o Real. Diálogos entre Psicanálise e Arte. Organizadores:
Marcia Mello de Lima e Marco Antonio Coutinho Jorge. Ed. Companhia de Freud.
Editor: José Nazar, 2009
Graça Moura. O Fantástico
no Feminino. Edições Rolim, Lisboa 1985.
Nota:
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