quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Para além da Psicanálise: As Marias nossas de cada dia

Professora: Vannda Santana

Revisão: Márcia Vital


Não há civilização sem loucura […] ela acompanha a humanidade por todo lugar que haja imposição de limites”.– Michel Foucault

Entender a loucura para compreender a humanidade ou vice e versa? É nesse lugar de humanidade que se escondem as peripécias do poder social e da desumanização sem limites contra a classe feminina. Estamos exaltando as Marias nossas de cada dia, aquelas mulheres incríveis que sabem ser múltiplas quando necessário.

 Este artigo não trata de questões sobre o feminismo; ele nos leva à reflexão da existência de algumas desigualdades “humanas” que atingiram, em maior parte, a existência das mulheres. O texto é uma proposta reflexiva sobre um conceito literário e mitológico da história, ao comparar a mulher ao mito.

 Entretanto, recorrer ao mito como traço de uma jornada feminina não significa debruçar sobre ideários de discriminação nesta proposta. O texto é uma narrativa sem compromisso de política partidária – não agrega conceitos radicais – ele visa atravessar fronteiras do pensamento humano e atrelar-se à arte como fenômeno literário e de expressão e, sobretudo, apontar para o alvo dos acontecimentos  da história e da cultura em contínua transformação. É nessa ordem de idéias que propomos aqui a leitura sobre a mulher  no seu cotidiano como representante de um tempo. Exaltar a coragem dessas mulheres de assumir o pecado como se fosse um mal e ainda ter a ousadia de transgredir  todo o contexto cultural, o que, aos nossos olhos, parecia andar na contramão civilizatória da história. Não queremos recorrer à Idade Média, muito menos abdicar de conceitos intramuros da existência.

Diante de uma breve reflexão, algumas discordâncias poderão surgir como fluxos de ideias atemporais ao serem analisados os fatos históricos sobre as mulheres e suas ações diante da contemporaneidade. Tal como o título sugere, algumas  mulheres, independente de suas atividades profissionais, assumem, na lida do dia, as Marias necessárias para dar conta da rotina que, nem sempre, cabe numa só mulher. E, não há uma mensuração para dar conta de quantas mulheres seriam necessárias para abrigar uma só Maria. Eis aí a grande loucura  primordial daquela que sabe ser mulher.

 “Ainda que simulem obedecer e optar pelo vanguardismo dos costumes, as mulheres são rebarbativas às inovações. No fundo da sua natureza, há um apelo ao primitivo, ao antigo, ao passado, ao já experimentado e, sob esse aspecto, não há fantasias para elas”[i].

Este escrito, não pretende vir a  ser um relato histórico ou acadêmico. Ele visa compor um espaço literário livre de marcos epocais e  se destina, tão somente, a apontar para um repensar o lugar da mulher na sociedade contemporânea sem a submissão de ser “santa” e sem o estigma de não ser feminina. Pois, é assim que grande parte das mulheres vive como prisioneiras da sociedade. Ao contrário dos mitos, das mulheres de “papel” ficcionais, estamos falando de mulheres reais de carne e osso. Mulheres que fazem de sua vida uma história de vida e arte. Por isso,  toda mulher é uma artista e, por isso mesmo, também, um mito. E a maior de todas as artes escultura-se em cada ação e em cada atributo no fazer de cada uma delas –  um louvor – ao desempenharem com galhardia o seu cotidiano. E elas são múltiplas, são tantas as Marias  nossas de cada dia –  Marias de todas as classes e de todas as cores que colorem os nossos dias com seus vestidos estampados desbotados ou não. Em cada uma, um mito se fazendo valer, ora revelando identidades, ora dominando angústias e sombras para deixar o riso nascer. E eis aí a arte que faz parte do ser de toda mulher.

Carl Gustav Jung (1875-1961), foi um dos primeiros a se dedicar e a encontrar na mitologia uma fonte de conhecimento e de inspiração. O psiquiatra suíço através da psicologia analítica  buscou nas divindades da mitologia grega e em outros mitos religiosos associar características presentes no ser humano tais como: a sabedoria, a coragem, a sensualidade, entre outras qualidades, em maior ou menor grau.

Assim sendo, quando um mito era contado, as pessoas acreditavam nele piamente de coração e alma. E, a partir da escuta, alguns indivíduos passavam a se identificar com certos mitos, encontrando, assim, traços de semelhanças com a sua "própria" história ou de alguém conhecido. Entretanto, somente através das qualidades e da força dos deuses é que os gregos puderam alcançar uma mudança interna que possibilitasse a presença de uma nova atitude, principalmente nas qualidades atribuídas às deusas.

Desse modo, a crença nos mitos se debruçava sobre os muitos atributos humanos encontrados nos deuses gregos, desde um comportamento físico até as reações emocionais e, em muitos, podia-se notar traços na aparência física. Assim, o estudo da mitologia veio nos proporcionar padrões de conhecimentos bastante favoráveis a respeito do comportamento do homem, contribuindo de forma significativa e reflexiva para os estudos simbólicos e psicológicos das atitudes dos homens pela referência simbólica.

Segundo Jung, os atributos dos deuses e deusas continuam presentes em nossas vidas como arquétipos - modelos de comportamentos universais que servem a todas as pessoas. De acordo com certas histórias, os mitos refletem a sabedoria humana, pois são adornados de temas que abordam e fazem parte da herança da humanidade em sua representação de imagens simbólicas. Desse modo, os mitos auxiliam na elaboração e compreensão dos "papéis" sociais desenvolvidos pelos cidadãos – quer seja nos relacionamentos familiares, entre os amigos, no dia a dia do trabalho ou na prática do lazer – o ser humano pode assumir um desses arquétipos em sua estrutura humana e poderá vivenciar  uma certa influência simbólica, não menos significativa de um desses deuses ou deusas, diante de um tipo de relacionamento ou de uma atividade que seja escolhida para ser desempenhada. Assim, os mitos evocam sentimentos e estimulam a imaginação humana, não importa o gênero em questão.

Para agregar novas reflexões arquetípicas sobre algumas mulheres míticas ou bíblicas, deixamos aqui algumas perguntas: o que  conta a Bíblia e o que ela não conta sobre Lilith?  A história de Lilith nos parece que se funde com a história de Eva, porém há evidências de que Lilith tenha sido a primeira mulher. Os escritos cabalísticos e gnósticos informam que Adão foi feito de poeira pura e Lilith de esterco e sedimento. Por não aceitar a submissão, ela fugiu do Éden e foi habitar as sombras, tornando-se, assim, o símbolo do feminino sombrio, da contestação, da não submissão e da rebeldia, da independência e da autossuficiência.

De acordo com o texto Teoria da Conspiração: Lilith a primeira mulher de Adão, há uma  afirmação, onde  autora faz analogia entre os textos sagrados do livro da Bíblia, do Talmude e do Torá, como justificativa de conspiração: 

No primeiro capítulo do livro Gênesis, que faz parte da Torá e da Bíblia, Deus cria “homem e mulher” a sua imagem e semelhança. Mas, logo no capítulo seguinte, somente Adão é mencionado. Onde foi parar a mulher do primeiro capítulo? É só no segundo capítulo que Eva é criada, e no terceiro que recebe seu nome. Essa inconsistência sugere que parte do texto tenha sido editada ou removida. [ii]

Interessante notar a constatação da não presença do nome de Lilith nesses registros sagrados. O que querem eles ocultar? Que padrão de mulher eles querem formar? Uma “santa” de carne e osso com total submissão? Ao desvelar o texto percebemos que há muito mais do que um reino de opressores, há muito mais do  que um simples patriarcado exercendo um tal poder “sagrado” sobre o feminino, onde as mulheres de então parecem ter parte com o “demo” e por isso devem ser castigadas. Desse modo, percebemos que a teoria de que Lilith  tenha sido “apagada da história”  evidenciaria um processo de conspiração ou um erro de edição. Porém, nada foi confirmado até hoje e tudo que temos, segundo essas análises, nos remete simplesmente à figura folclórica de Lilith, como mera suposição e sem credibilidade científica.  

 Ainda, segundo pesquisadores, Lilith já estava lá

O registro mais antigo dessa figura está nas gravuras dos amuletos de Arslan Tash, relíquias que datam do século 7 a.C. Alguns historiadores argumentam ainda que Lilith é mencionada ainda antes, na demonologia suméria do terceiro milênio a.C. Na Épica de Gilgamesh, poema mesopotâmio de 2100 a.C., há uma possível menção a Lilith como demônia. Ou seja,Lilith já era conhecida antes de compilarem o Gênesis, o que reforça a teoria de que foi “apagada da história”.[iii]

No texto citado, discute-se à desmitificação sobre a figura da mulher  que ainda mantém o mito pela tentação de Eva ao fazer Adão comer o fruto proibido, ocasionando, assim, a expulsão de ambos do paraíso.  Sabemos que a partir daí, uma consciência foi estabelecida entre os dois – a diferença de sexo e suas polaridades. Esta polaridade  torna-se clara diante da necessidade de combinação e complementaridade, remetendo-nos à perfeição inicial. Assim, sendo, homens e mulheres estão, por assim dizer, inconscientemente, motivados por essa busca – busca infinita de um pelo outro – visando à totalidade perdida, neste caso, uma espécie de androgenia.

Ao concluir este artigo, considero relevante destacar a importância de uma cumplicidade que se dá entre o autor e o leitor. Ainda que ambos não saboreiem do mesmo prazer estético, da mesma safra filológica e do mesmo símil, ainda assim, a escrita servirá de elo pela “transliteração da fala”.  O texto segue sua senda, composto por palavras que podem atribuir um prazer que derive de um encontro mágico com um significante qualquer ou com a extravagância de algum sentido. É dessa forma que as palavras ganham asas e, através delas, me convenço de que o texto escrito seja um veículo de comunicabilidade entre o escritor e o leitor. Por isso, escrevo pelo prazer da sedução que a palavra exerce. Escrever é mais que um sintoma, é uma “euforia”, enquanto que o ato de ler resulta numa “embriaguez”, consequência da euforia.

Desse modo, ofereço aos meus companheiros de estrada (meus leitores) a minha reflexão.  Compartilho pensamentos, intencionando troca de ideias.  Ao comungar este símil, deixo explícita a pretensão futura de nos encontrarmos pelos caminhos de outras abordagens. Neste “tecido” segue a imaginária malha da subjetividade – a de que a psicanálise seja avessa à compreensão, embora tudo esteja no limiar do desejo.

Fonte:
Saber Fazer com o Real. Diálogos entre Psicanálise e Arte. Organizadores: Marcia Mello de Lima e Marco Antonio Coutinho Jorge. Ed. Companhia de Freud. Editor: José Nazar, 2009
Graça Moura. O Fantástico no Feminino. Edições Rolim, Lisboa 1985.

Nota:


[i] Isabel Alegro de Magalhães. O Tempo das Mulheres. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 1987, pag. 207.
[ii] Gabriela Portilho, http://mundoestranho.abril.com.br/religiao/teoria-da-conspiracao-lilith-a-primeira-mulher-de-adao/
[iii] Ibid

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