segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A arte de Jean-Honoré Fragonard no estilo Rococó: O Balanço (1766)

"Eu vivia num estado de tensão, à medida que fui conseguindo traduzir as emoções em imagens- isto é, à medida que fui descobrindo as imagens que se encontravam escondidas nas emoções- vi-me acalmado e seguro interiormente." C.G. Jung






O rococó é o estilo artístico que surgiu na França como desdobramento entre o barroco e o arcadismo, porém, bem mais leve e intimista que aquele usado inicialmente em decoração de interiores. O estilo desenvolveu-se na Europa do século XVIII, e da arquitetura disseminou-se para todas as artes. Um dos movimentos vigorosos da época até o advento da reação neoclássica por volta de 1770, quando se difundiu principalmente, na parte católica da Alemanha, na Prússia e em Portugal. 


O movimento rococó teria sido considerado por muitos, por ter adquirido características “profanas” uma variação vinda do barroco.  Esse movimento, ganha maior expressão a partir do momento em que houve a libertação dos temas religiosos, dos temas utilizados em cenas eróticas ou da vida cortesã tais como (as fêtes galantes). Havia uma farta estilização naturalista do mundo vegetal em ornatos e molduras além dos temas mitológicos, pastorais, com alusões ao teatro italiano da época. O termo (rococó) deriva do francês rocaille, [rocalha] que significa "embrechado", técnica de incrustação de conchas e fragmentos de vidros utilizados originariamente na decoração de jardins e grutas artificiais  que se populariza por analogia ao termo italiano barocco. 


Na França, o rococó é também chamado estilo Luís XV e Luís XVI. Há ainda, a expressão “época das Luzes”  na qual teve sua notoriedade, talvez pelo relativo apelo ao século de paz na Europa marcado pelo período de pós Revolução Americana de 1776 e logo em seguida, pela Revolução Francesa de 1789. No centro dos acontecimentos, a história surge agregando as artes, as formas e as expressões artísticas – o Século das Luzes, culminando com – a gramática estilística do Neoclassicismo, por dominação e criação dos artistas.


Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) – e seu estilo de época do século XVIII europeu, o rococó. Um estilo que se desenvolve em meio às sutilezas de uma complexidade formal diante dos excessos do barroco, apelando para a leveza, graça e para os coloridos suaves. Os alemães se antecipam ao empregar o termo em sua acepção moderna de estilo artístico referindo-se à arquitetura e as artes ornamentais na segunda metade do século XIX, libertando-o assim do sentido pejorativo que o acompanha, desde a origem até o século XIX. Mas somente em 1943, com a obra clássica do historiador Fiske Kimball sobre o assunto, The Creation of the Rococo, que se fixam as origens do estilo na França em meados do século XVIII. A partir daí, o rococó deixa de ser visto como uma variante do barroco, passando a ser considerado um estilo autônomo, irredutível ao barroco e ao clássico.


Os historiadores da arte distinguem dois momentos do rococó. Um que vai de 1690 a 1730, o "estilo regência", marcado pelo rompimento com a rigidez arquitetônica do estilo Luís XIV, com a introdução de curvas flexíveis e de linhas mais soltas. Datam desse momento, as decorações de Pierre Lepautre (1660-1744), as gravuras e relevos de Jean Bérain a pintura de Jean-Antoine Watteau (1684-1721), pintor mais importante do período que imortaliza "as festas galantes" (por exemplo, Peregrinação à Ilha de Cítera, apresentada à Academia em 1717), gênero maior da pintura rococó. Os anos compreendidos entre 1730 e 1770 marcariam o rococó propriamente dito com a projeção de uma nova leva de artistas - Juste Aurèle Meissonnier (1695-1750), Nicolas Pineau (1684-1754), Jacques de Lajoue II (1687-1761), - que trabalham na remodelação das residências urbanas da nobreza e alta burguesia parisiense (os chamados hôtels), dotando-as de maior funcionalidade e conforto. Nesse sentido é que o estilo se desenvolve ligado à ornamentação de interiores, preferencialmente articulado às artes decorativas e ornamentais, boa parte delas consideradas menores, como o mobiliário, a tapeçaria, a porcelana e a ourivesaria.


Um exemplo característico do estilo na França pode ser encontrado no Salão Oval da Princesa do Hôtel Soubise de Paris (1738-1740). Na pintura, os nomes mais importantes dessa fase são François Boucher (1703-1770), Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), Jean-Baptiste Pater (1695-1736) e Jean-Marc Nattier (1685-1766). Na escultura, Etienne Maurice Falconet (1716-1791) é considerado a expressão mais relevante do rococó, como atesta sua célebre Banhista (1757), e a estátua eqüestre de Pedro, o Grande, na antiga Leningrado, atual São Petersburgo.


Os traços mais salientes do estilo rococó relacionam-se ao uso das rocailles, que se combinam aos arabescos com linhas curvas em c ou s. As composições realizadas com extrema liberdade e fantasia mesclam a sinuosidade das linhas com motivos tirados da natureza: pássaros e pequenos animais, plantas e flores delicadas, formações rochosas, águas em cascata ou brotando do solo. Na arquitetura, sobretudo nos interiores, predominam os traçados sinuosos, as cores claras, o uso da luz (pelas janelas francesas que descem ao chão) e dos espelhos. O luxo da decoração interna tem o seu contraponto na simplicidade das fachadas externas dos edifícios. Ao redor de 1760, assistimos à retomada das tendências e repertórios clássicos, nas pilastras, medalhões e troféus que tomam conta das decorações. Enraizado culturalmente no século XVIII, o rococó liga-se à sociabilidade elegante do período, às modas e maneiras cotidianas que têm nos salões literários e artísticos expressão significativa. A polidez e a performance social que os salões evidenciam vêm acompanhadas da importância do luxo e refinamento (do espírito e do corpo). As artes, nesse contexto, ligam-se diretamente ao prazer e ao divertimento o que leva os estudiosos a falarem em um fundo hedonista presente nas mais diversas manifestações do rococó.


A vivacidade e alegria da vida cotidiana, além da frivolidade elegante da sociabilidade cortesã francesa, rondam também a pintura rococó, como exemplificam as telas de Boucher e de Fragonard, seu aluno. Em Boucher, os temas mitológicos associam-se às cenas galantes, como na famosa Menina reclinada (1751). As cores delicadas e o erotismo do mestre encontram ressonância no trabalho de Fragonard - O Balanço (1766), que explorou também as paisagens e a pintura histórica. Nattier, principal retratista do período, retoma, em clave um pouco distinta, a associação entre vida cortesã e temas mitológicos, por exemplo em Mme. De Lamberc como Minerva (1737). Watteau, pioneiro no interesse pelas festas campestres e pelas cenas teatrais, imprime à pintura da época não apenas um repertório novo, como também um método particular, que consiste em justapor pequenas manchas de tinta sobre a tela, no que será seguido por Pater.


O estilo rococó se internacionaliza rapidamente pela Europa Central, mas também pela Espanha e Portugal, adaptando-se a contextos muito diversos. Chama a atenção nesse processo a sua penetração na arte religiosa, contrariando uma origem ligada à nobreza e à vida mundana. A arquitetura religiosa rococó, de fraco desenvolvimento na França, vai conhecer expressão maior seja na região da Baviera, seja na zona portuguesa do Minho e logo depois no Brasil.  Nessas regiões, o estilo sofre as influências do barroco italiano e das tradições autóctones, adquirindo feições originais. No caso do Brasil, especificamente, observa-se a forte penetração do rococó na arquitetura religiosa desde meados do século XVIII no Rio de Janeiro, em diversas cidades mineiras (Ouro Preto, São João Del Rey, Congonhas do Campo etc.), em Pernambuco, Paraíba e Belém.


A estética dos opostos marca a vida e a arte no período Barroco com as maiores contradições: místico e religioso; cientista e sonhador; dia e noite; carinho e açoite; frio e calor; raiva e amor; açúcar e sal; bem e mal; sombra e luz; desespero e calma. Um período de contrastes e de ações que tentam revelar os segredos da alma.



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A SOLIDÃO DO FAROL





Mar, mar e mar. Águas salgadas, por-do-sol, veleiros e faróis são os ingredientes mágicos e os elementos de transformação do fictício que residem na imaginação do artista, para ser manifestação ideal do real, através da palheta alquímica do pintor.

O que faz do artista ser um pintor?  E priorizar em suas idealizações uma forma de arquitetura como os faróis?  Eu não tenho resposta para tal pergunta. Talvez o homem e a obra de arte sejam uma “coisa só”, unidos numa espécie de fusão‑andrógina capaz de resgatar do imaginário, através do processo simbiótico e, de lá, deixar nascer o “filho de sua construção”: a obra de arte.

Assim, os faróis nascem emergidos das profundezas oceânicas, iluminando ou iluminados de por‑do‑sol. E lá sempre estão eles como ícones sinalizadores e solitários: altos, opacos ou coloridos; tristes ou alegres, mas altamente ativos em suas funções. Atentos em sua solidão, marcando o ponto de chegada e o princípio da partida. Um olhar para os que se encontram perdidos, um olhar piscando na escuridão da noite, anunciando a esperança e o caminho. Imerso em total solidão e refletindo o silêncio como quem exibe sua ambivalência, vive o farol cumprindo seu papel. Porém, na tela do imaginário de quem escreve ou pinta; o farol também reflete luz.

Desse modo, o artista cria  imagens que irão vestir de solidão a alma  feliz do farol. Tinge-o com as mais belas tintas; glorifica-o como um estandarte e dá-lhe a imponência de ser ele um ser exuberante. Assim sendo, o objeto de arte segue sinalizando a procura que  aponta para o alvo ao mesmo instante em que ascende  para o inesperado desejo do encontro. E, na condição de um pirilampo orientador, cumpre o farol seu real e fiel papel: ser sempre o solitário da vigília na densa escuridão da noite. E o farol vive no ritual de sua função, mergulhado no breu do mar, sendo quase  um mito de adoração, erguido como figura limite no infinito distante de fixos olhares. Neste instante, vê-se a luz  no final do túnel.

Será o farol o espelho refletido que a mão sonhadora do artista teima em ver materializado em sua ficção imaginária? Ou será a obra de arte que se faz pronta como construção arquetípica ao se constituir no próprio ser da arte? A expressão de criação  artística surge do transbordamento da  consagração do pintor. Esta é a paixão que o objeto de arte desperta em todos os olhares fortes; e refletindo imaginações figuram como lentes onde  não caberão análises, nem palavras que possam definir a estreita conexão entre a manifestação e a intenção que leva artistas e suas obras a se fundirem em tais convergências semânticas.

 Aí está uma simples relação no âmbito social dessa reunificação, homem e arte, sujeito e objeto: indissoluvelmente ligados. Esta é a fusão simbólica e de comunicação mítica.

 Assim sendo, antropólogos, psicanalistas e semiólogos se debruçam sobre essa semântica que fundamenta o dinamismo organizador da imagem como força modelar de representação da realidade caótica em uma desordem‑organizadora. A criatividade tenta dar conta do fenômeno da obra de arte; mesmo que esta  flutue. Mas, segundo o artista, ele expressa as tendências sociais de seu tempo consciente ou inconscientemente. Porém, as formas de expressão irão encontrar sua função mais autêntica, quando são atingidas pelo desafio do enfrentamento cotidiano, com os limites do saber tácito desembocando para além do saber artístico.

O processo criativo simboliza, sobretudo, a significação com a restauração  do encontro da unidade com a divindade – Eros e Tânatos – que  coexistem e convivem nesse ponto primordial. Essa fusão que se dá no encontro mítico, metáfora precária que pretende subordinar o sublime instante do “ato de criação”, traça o perfil imaginário, onde  um nasce do outro  e, assim, se fazem   ser e criador – do  objeto de arte, processo de uma metáfora  que se plasma como realidade do ato de criação.

E o farol está lá, nas águas temperadas das ninfas de sol e mar, do sal e das alvoradas. Mas as minhas palavras estão aqui.  Porém, se mais quiserem  saber, hão de mergulhar na plasticidade de muitos aventureiros que se perderam em mares de outrora. Mas, se ainda persistirem, hão de encontrar construtores, artistas, escritores, usando a solidão dos faróis para neles e com eles se encontrarem. Portanto, ofereço-lhes mil e um faróis para serem lidos em poesias, contos e crônicas ou nas telas, cujas palhetas em aquarelas, tentarão exprimir o indizível de qualquer olhar que queira ver e sentir a solidão feliz do farol.
 
Fonte:
SANTANA, Vannda. O avesso e reverso na ponta da pena.  Oficina Editores, Rio de Janeiro, 2007.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Entre a profissão e o esporte: a prática de uma ação

Pedra da Gávea - São Conrado

Um fato aparentemente simples, mas relevante, pela forma do acontecimento; e, como nada acontece por acaso, este “caso” é só mais um episódio na soma de tantos outros; sempre com final feliz, mas (quando dá pra ser). Então, vamos contar o caso, como as coisas se apresentam e como se organizam no meio do caos e por quê.  Cada caso acontecido tem sua história fundamentada numa espécie de organização improvável. É assim desse modo, como tudo aconteceu; e, com vocês, a história da “Trilha”.

Certo dia, mais precisamente em 11 de agosto (estamos em 2014), mais uma missão para o BOMBEIRO – GUARDA-VIDAS, no seu dia de descanso. Neste dia, recebe ele um convite para fazer uma “trilha” e o lugar escolhido: a (Pedra da Gávea). Convite aceito, mochila nas costas, recheada de ingredientes necessários, prepara-se para seguir o ritual da jornada. Vale lembrar aos desavisados que esta prática de fazer “trilhas” em lugares como este citado acima não deve ser exercida sem um guia capacitado.

Então, vamos ao caso. Já sabemos que há uma história e, para início de conversa, vamos falar de preparo físico, disposição para encarar “surpresas” boas e ruins, enfrentar riscos, até da própria vida. Antes de mais nada, tem de haver cautela, sem a qual, é melhor não arriscar. Diante do esporte, com seus ditames e aventuras radicais, há que se cumprir a exigência de um regulamento de proteção à vida para dar início a missão. E tudo se inicia assim: céu azul de brancas nuvens, sem ventos soprando “agouros”, e o dia promete. Pé na estrada rumo a Pedra da Gávea. Rota demarcada, tudo certo, lá vai o Bombeiro e seus colegas para mais um dia de aventura; atingir o alvo da subida, alvo atingido, agora é hora de retornar, antes que a noite desça. Mas, na descida, uma surpresa.  E este é mais um episódio entre tantos já acontecidos, sem registros efetivos. Por isso mesmo, estamos registrando este, que será o primeiro de outros    que  virão com cenas  e atitudes “surpreendentes”.

Na trilha, a história aconteceu assim: no meio da descida da montanha, na metade do caminho, um homem sentado, entre dores e desconforto – um ombro deslocado.

- E aí, amigo! O que houve?

- Estava indo passar a noite em vigília; em oração no topo da montanha, quando, de repente, uma queda.

 A pobre vítima, em meio aos seus gemidos, nem falar podia tamanha era a sua dor. Aproxima-se, então, o Bombeiro; e o que ele constata, logo de início, sem mais delongas, o diagnóstico: deslocamento do ombro esquerdo. Então, entra em ação: práticas cotidianas e todo um arcabouço de experiências vivenciadas de praias lotadas nos pontos mais requisitados do Rio de Janeiro. Porém, a vítima desta aventura, era um “pastor” que iria “Vigiar e  Orar” a noite inteira no topo da montanha; mas quis o destino interromper seu contato de congraçamento com Deus e colocou em seu caminho difícil, pessoas que, também, são enviados especiais para “salvar vidas” não importa onde e como estejam.

E, assim, disse o bombeiro ao pastor: vou resolver seu problema, tenha calma, tudo vai dar certo.

Mas eis que, de repente, surge, do nada, um casal que também se apresenta para ajudar o pastor, dizendo serem médicos. Sai de cena o bombeiro para os médicos agirem. Porém, o bombeiro permanece ao lado, apenas olhando o procedimento que os médicos iriam fazer.

Aí, amigos, é que a coisa pega. E pega legal. Os médicos ficaram assustados e não sabiam o que fazer com aquele ombro deslocado e com aquele “baita” osso apontado para trás.

De novo entra em cena o BOMBEIRO – e  com letras maiúsculas porque deveria ser assim saudados por todos em suas profissões pelas obras de “salvadores” – pois em qualquer que seja o lugar, lá estão eles, sempre prontos para agir, resgatar e “salvar” . E o bombeiro, com sua simplicidade e no heroísmo de sua eficiência, avisa ao paciente que tenha calma, que tudo vai dar certo e tudo ficará bem.

O pastor responde: eu confio em vocês. Os médicos saem de cena, permitindo a ação do bombeiro. E seguem as instruções: olha amigo, faça realmente o que lhe digo, vou colocar seu ombro no lugar. Enquanto o bombeiro conversava com o pastor, ia preparando os apetrechos para realizar o procedimento. De repente, pronto. O ombro estava no lugar.

E o pastor, estupefato, surpreso e sem dor, só sabia clamar por “Glorias” e mais Glorias, dizendo que iria orar pelo resto de sua vida para o bombeiro “salvador” do episódio acontecido naquele dia tão fatídico.

 E assim termina esta história. Mas outras tantas virão.


terça-feira, 10 de junho de 2014

"NARRAR PARA VIVER E LER PARA NÃO MORRER"



“NARRAR PARA VIVER E LER PARA NÃO MORRER”
“Quase em lágrimas, acabei por depô-los sobre os joelhos de minha mãe. Ela levantou os olhos de seu trabalho: “O que queres que eu te leia, querido? As Fadas?” Perguntei, incrédulo: “As Fadas estão aí dentro?”
(Biografia de Sartre, “As Palavras”)
Por: Vannda Santana
Revisão: Marcia Vital
Relendo o livro Biblioterapia de Marc-Alain Ouaknin, é possível questionar por que uma técnica tão antiga de leitura pôde levar tanto tempo para ser considerada mais que um mecanismo de entretenimento –  técnica terapêutica para curar – muito além do alto poder de sedução e encantamento. Além do mais, já sabemos que as histórias infantis guardam seus truques; pois além de cativar o ouvinte pela magia presente em cada conto de fadas, também favorece a que toda criança, ao simbolizar, se reconheça na trama do simbólico, na esteira da escrita. Na epígrafe, infere-se como a leitura dos contos de fadas pode produzir significados psicológicos tão eficazes, capaz de despertar o desejo de integração ao simbolizar a aventura, projetando, assim,  na emoção e no encantamento, o processo de construção da personalidade. Nos contos de fadas, o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida; e as propensões para ambos estão presentes em todo homem (BETTELHEIM,1996).
A leitura, para uns, exerce a representatividade de uma necessidade, enquanto, para outros, serve como teor lúdico. Mas a leitura como terapia tem um papel mais profundo embutido nas palavras como um remédio sem efeitos colaterais. É desta leitura que vou expor a minha opinião para você, leitor. Trata-se do dizer daquilo que a leitura produz em silêncio e do que ela pode ser capaz de promover para o crescimento emocional de qualquer indivíduo: os exilados de qualquer estado ou, ainda, para as realizações imaginárias, para o amadurecimento psíquico e para uma legião de necessitados que se realizam através de leituras específicas.
 No livro a que me refiro, Biblioterapia, abrindo um dos capítulos denominado Ler, curar, iniciando, textualmente, a narração como projeto de “ler para não morrer”, entra em cena a personagem de as Mil e uma Noites, conhecida como Xerazade, a princesa que contava história para escapar da morte. A partir daí, a técnica de biblioterapia ganha um status de verdade necessária, tal como nos contos de fadas.  O texto nos informa que é viável a prática da leitura como terapia em qualquer condição, física ou emocional.
 “O diálogo biblioterapêutico produz uma “passagem dialógica/dialética de um sentido para outro no seio da significação de uma mesma posição pulsional, passagem correlativa à intuição de um espaço de mediação, de transição entre os leitores, ‘espaço tradicional’, como diria Winnicott, espaço de troca no qual a verdade não é posse de nenhum dos pólos presentes, mas no qual ela se certifica surgindo na passagem da passagem de uma a outra via a passagem intermediária que os separa e liga.”[1]
          Para tanto, é necessário perceber que esta não é uma técnica recente na história literária. Já na antiguidade, Aristóteles, discorreu sobre a liberação das emoções como resultante da tragédia; em que a partir do ato de excitamento das emoções, de piedade e medo notava-se um alívio prazeroso, proporcionado pela catarse. Desse modo, vejo na leitura uma porta aberta à criatividade, assim como já fazem os “doutores da alegria” (pequenos grupos de profissionais caracterizados de motivos circenses) que adentram alegres e corajosamente os hospitais e enfermarias pediátricas, levando alegria em seus rostos caracterizados, somente  para subtrair o sorriso de olhares tristes e doentes de crianças. A leitura aqui é mais que uma metáfora e pode ser um gesto, uma mímica, um conto ou uma história qualquer que desperte novas emoções. Esta é uma prática de possibilidade ressignificativa, um instrumento de auxilio e cura para todos aqueles que se encontram internados e por extensão, aos familiares dos pacientes que estão envolvidos no processo de cura. A biblioterapia é uma dessas práticas que entra na vida do indivíduo e deixa uma marca como resposta significante: amenizar o sofrimento com algo prazeroso que nos invada a alma. Ela pode ser utilizada nos asilos, lugar onde os idosos vivem com poucas opções de leitura, provenientes de suas visões já cansadas. Além disso, a técnica será indicada também para internos de qualquer lugar onde haja necessidade de romper com os limites, através do vasto universo que há no mundo das leituras.
 Para o profissional de arteterapia, vejo a leitura, hoje, como uma aliada de grande importância à criatividade; tão importante quanto um pincel, um lápis ou um frasco de tinta. São inegáveis os aspectos da leitura como técnica de reler e rever o lido e o escrito como auxílio de transliteração do texto. Portanto, principalmente para os profissionais da arteterapia, deve-se ter um cuidado na indicação da leitura, cabendo ao terapeuta fazer uma seleção de maneira criteriosa para que o conteúdo a ser oferecido ao indivíduo traga respostas como objeto de criatividade que se pretende alcançar com a criação da técnica. Para que tal atitude tenha sua eficácia, é bom ter o cuidado em levantar o histórico de vida do indivíduo, o que ele está passando naquele momento, qual é a sua história. Este processo remete-nos a uma anamnese que deverá ter, como referência, a essência da leitura textual.  A busca por tratamentos especiais e/ou alternativos, aliados aos tratamentos convencionais estão cada vez mais expostos e competitivos, tal como numa vitrine de ofertas. Entretanto, a proposta deveria ser o bem-estar do paciente; e o que conta, realmente, é a saúde em questão. Lamentavelmente, não é bem assim que a “coisa” funciona; o que acontece não é o que ocorre em todas as esferas da saúde. A biblioterapia surge como uma nova abordagem e uma nova opção de tratamento para todos os casos e  idades, tipos de patologias e situações. Dentro dessa nova modalidade de criatividade, estão hipóteses de vários recursos textuais: leitura silenciosa e oral; interpretação e sentido; dramaticidade gestual entre outras possibilidades.
 A biblioterapia admite a possibilidade de terapia por meio das diversas  leituras de textos: contos de fadas, romances, poesias, peças de teatro, filosofia, ética, religião, arte, história, livros científicos, contos populares e textos literários. Contempla ainda, a leitura de histórias e os comentários adicionais. Propõe práticas de leitura que proporcionem a interpretação do texto teatralizado.  A biblioterapia sustenta um fundamento filosófico e psicológico os quais determinam a identidade dinâmica de como esse processo de identificação entre o leitor e o ouvinte se vale da introjeção e da projeção, partindo aliás, do pressuposto de que toda experiência poética será sempre catártica e de que toda liberação da emoção irá produzir uma reação de alívio da tensão, ao mesmo instante em que acalma a psique com seus princípios de um valor terapêutico.
Percebemos, então, que a função terapêutica da leitura admite a possibilidade de a literatura proporcionar a pacificação das emoções. Retomando, aqui, as lições de Aristóteles, podemos observar que o filósofo analisa a liberação da emoção como uma resultante da tragédia – a catarse. Porém, chamamos à atenção para o tipo de exposição de leitura; o texto a ser lido  para liberar o excitamento das emoções de piedade e medo, terá de passar por uma seleção criteriosa, a fim de proporcionar, então, o alívio prazeroso. Assim, a leitura do texto literário, teria uma função determinante, tanto no leitor quanto no ouvinte, gerando o efeito de placidez, que seria como (remédio) e a literatura, a virtude de ser  o (calmante), a dose certa e sedativa para curar as angústias do dia a dia.
 Desse modo, pode-se afimar que existe uma terapia exercida por meio de livros, uma terapia que recebe o nome específico de biblioterapia, originada de dois termos gregos biblion – livro, e therapeia – tratamento. Admite-se que esse conceito, trata-se de uma técnica de terapia necessária a todos os cidadãos, indistintamente de credo, idade, raça e lugar.
Bibliografia:
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Paz e Terra, 1996. São Paulo. 11ª edição.
SARTRE, Jean-Paul. As Palavras. Difusão Européia do Livro, 1964
OUKNIN, Marc-Alain. Biblioterapia. Edições Loyola. São Paulo, 1996



[1] P. Lekeuche, “Le lest de Szondi, p.326. In Marc- Alain Ouaknin, p.158.


domingo, 27 de abril de 2014

Brasil: Miragem e realidade



Texto: Vannda Santana

Revisão: Marcia Vital


 
 

A Casa e o sonho de ser um brasileiro cosmopolita num país sem "ORDEM" e sem "PROGRESSO".

Mesa desarrumada, papéis soltos, embaralhados, assuntos empilhados sem solução.  Assim, meio perdida nesse universo restrito, restrinjo o grito de uma agonia implícita, de onde ouço e sinto, inerte, nada poder fazer contra o vírus que se propaga, principalmente, no cenário do poder público, causando na consciência nacional um distúrbio generalizado, gerando em todos nós uma banal descrença. O mau desempenho do poder público é uma espécie de câncer à brasileira que vai se degenerando e formando, visivelmente, uma massa intocável dos chamados defensores do sistema. Estes senhores, células corrompidas do governo, cuidam apenas em se proteger para continuar cada vez mais “fortes”; para corromper cada vez mais; para vender a qualquer preço as nossas riquezas. 

A metáfora da casa tem como objetivo sinalizar a desordem que invadiu nossos lares literalmente. Penso que para todo mal há sempre uma cura, mas, no caso do Brasil, assisto ao descontrole de um país que não é levado a sério; não sei onde, nem como encontrar solução. Meio desiludida com os políticos de um modo geral, desconfiada e sem ver uma luz no final do túnel, acho que este “tumor cancerígeno” há de explodir a qualquer momento.  O poder público adquiriu e coletivizou um ego doentio de governantes desajustados, de  epidêmicas reações e de discursos vazios. Não há como desviar o alvo desse foco inflamado segregado há séculos. Parece-nos coerente nos fazer ouvir em nossos descontentamentos, mas não basta um BASTA a toda e qualquer espécie de sorte e farsa. Temos de reunir forças para resuscitar o Brasil que se encontra armado contra o povo que está anestesiado, acreditando num Messias que possa vir nos salvar.

 Acorde Brasil! Saia desse terrível pesadelo! Levante-se e venha suscitar no povo novas esperanças, nos faça crer na raça e na força destemida dos brasileiros, aqueles mesmos que torcem cegamente pelo futebol. Penso num governo justo que não ameace o nosso futuro.  Mas o que fazer para despertá-lo se os interesses políticos já estão todos comprometidos? Falcatruas viraram manchetes comuns na ordem do dia. A imprensa empresta sua voz e desvela a sujeira escondida debaixo dos panos, mas ainda assim a verdade é distorcida e as autoridades só a usam para favorecer os senhores do poder.

Chegou a hora de uma nova esperança - futura. Mas que diabo de esperança é essa que chega o futuro e nada de esperança? E todos pagam para ver;  e veem que o hoje é sempre hoje sem amanhã; e o amanhã está no ventre do ontem para nascer. A fotografia da história empresta-nos sempre a mesma cara.

Na alquimia dos meus sonhos, sonhei a venturosa casa brasileira onde, com bases firmes, a dignidade pudesse ser erguida como construção do caráter social do país. Porém, entristeço-me em saber que essa "casa" não possui sequer alicerce; ruíram-se todas as bases de conduta moral. Não acreditamos mais no alarido de discursos vazios que põem em cheque a tão sonhada democracia. Queremos uma democracia autêntica que não se contamine pelo mortal vírus da desordem maligna. O legislar em causa própria faz parte de uma ideologia falida que hoje tem sido o real objetivo daqueles a quem elegemos para nos representar.

Tenho a impressão de que tudo ficou lá atrás nos registros de um ufanismo vivido pelos idos do início do século XX. Hoje, apenas o sonho é o que sobrou para rebater tanta insatisfação diante do que vemos acontecer.

 Será que Lima Barreto tinha razão quando falava de um amor à Pátria? Assim como ele eu também acreditava. Tanto que escrevi esta crônica pensando oferecer qualquer coisa que pudesse mudar o rumo dessa história. Mas tal como Lima Barreto, em que sua crença o conduziu à  loucura, acho que devo estar trilhando o mesmo caminho por não encontrar eco na honestidade dos governantes deste pais.  O perfil dessa história política não deveria perfilar nas linhas que escrevo; mas se o faço não é por mero prazer; nem acredito que seja meu dever desvelar fatos que aniquilam a consciência do povo de um modo geral. Como escritora obrigo-me a denunciar nesta crônica os abusos que os Senhores do Brasil estão fazendo com a nação inteira; sentindo-se os próprios donos do povo, amordaçando nossas consciências.

Num turbilhão de desconstrução moral, a civilização moderna aderiu “comodamente” à máquina produtora de crimes e com ela ao sistema organizado de corrupção. Basta ligar a TV e pronto, o pacote vem completo! Nem precisamos sair de casa. Pela porta da frente entra o mal sem pedir licença.

Hoje, assistimos ao horror e à violência urbana tomar conta de ruas e  cidades na tela do dia-a-dia. Falam em bairros, comunidades, favelas; em melhorar a vida desses menos favorecidos, mas o que se veem são flagelos humanos espalhados em fatias de caixas de papelão por calçadas e praças públicas das cidades brasileiras.

  Denunciar fatos como esses relatados não dá ibope. Mas penso que em cada um de nós, cidadãos brasileiros, habitam também retalhos desses  trapos acinzentados, não como poética de um estado sintomático, nem como semântica da realidade  com a qual todos nós estamos envolvidos,  mas falo impulsionada  pela voz da certeza de que o morro ainda vai ter vez.

Aquilo que nossos olhos e ouvidos alcançam, dentro e fora de nossas casas,  nos deforma e nos transforma em marginais, espectadores de nossa própria desgraça silenciada. E isto não se escreve em um só livro. Mas tudo isto se inscreve em nossa consciência abarrotada de indecisão, desconfiança e tristeza, no mesmo instante em que se instalam no coração do mundo as mais vis destruições dos chamados valores morais. A sorte e o destino de milhões de brasileiros estão aqui nesta crônica, juntamente comigo, emparedados, aprisionados por uma liberdade chamada democracia que só se vê inscrita no papel.

Lamentavelmente, esse é o cenário de nossa brasilidade, cheio de violências e de corruptos, de personagens comuns estampados nas manchetes de nossos jornais. Hoje, ninguém se assusta mais em ter que se desviar de um corpo morto, caído na esquina de sua casa.  Quanta permissividade, quanta injustiça, quanta indiferença e  quanta impunidade, banalizando a vida! De tudo que sobrou do caráter político-social dos governos atuais nos resta a pergunta: quo vadis?

terça-feira, 11 de março de 2014

Leituras possíveis de imagens da imagem


    Por: Vannda Santana     
 
       Dama Ensimesmada

   Márcia Vital - Óleo s/tela -1983
 

A história se fragmenta em imagens, não em histórias.
                                      W. Benjamin (2007, p. 518).

 

Este quadro pertence a uma série de outros da autora que se assemelham, tanto na forma, quanto no estilo monocromático. Nesta linha dos marrons, a artista denuncia, com certa discrição, corpos de figuras que se apresentam com um erotismo que se quer camuflado no emaranhado dos elementos que lhe servem de adorno. Nesta fase de elementos que transitam entre o cubismo e o surrealismo, percebe-se a predominância de traços em busca da forma ideal – no ensaiar de uma transparência – para vir a ser a marca singular do traço significativo que logo iria se estruturar como estilo de uma fase e, consagrando, assim, a obra da artista Márcia Vital. É possível identificar, ainda, nos trabalhos desse momento, esse marco como presença do traço de “claridade”, de “luminosidade” no delineamento dos contornos, ao espraiar-se de dentro do escuro do marrom, para exibir-se como um detalhe de complemento ao transbordar do limite extremo, onde as figuras se mostram, sugerindo movimentos. Esses traços sugerem uma ligeira semelhança estética com o estilo cubista ao mesmo tempo em que nos faz acreditar que, dada a sua formação profissional (professora e mestra em Literaturas), guarde uma referência estética, em seu acervo inconsciente, à obra de Tarsila do Amaral.

 Não estamos classificando nenhuma abordagem teórica do estilo de Márcia Vital, apenas sugerimos um olhar à obra de arte como elemento de expressão artística, apontando suas possíveis linguagens da imagem: de acordo com o que se refere a epígrafe de W. Benjamin. Por outro lado, não intencionamos ilustrar seu aspecto teórico nem mesmo impor o nosso olhar; a arte que aqui se expõe fala por si.

Márcia Vital nos convida a rever a nossa própria história com o fervilhar de acontecimentos culturais, chamando-nos à atenção para as tais marcas de seu traço peculiar. Através de suas figuras com pernas e braços alongados, marca singular de seu estilo, sugerem lembranças da fase de expressões surrealistas. Esses finos traços de claridades em torno da própria figura emprestam aos olhos esse instante imaginativo: um vislumbrar de formas sensuais e femininas, anatomias que se apresentam a compor o arranjo que se complementa numa espécie de chapéu vestindo a cabeça.

 Nessas formas anatômicas concretas e decodificáveis, conjugam-se figuras eróticas como componentes desse arranjo, numa reunião de traços em formas de corpos nus que compõem o figurino em torno da cabeça, como se fosse um chapéu. Guardam-se nesta visão as devidas sensações por nos permitir lembrar uma Medusa, figura mítica que carrega o conceito de uma criatura terrível entre as (divindades marinhas). Arrefecendo nossa memória, conta a lenda tratar-se de uma linda mulher com asas de ouro, mas que foi castigada por Atena (deusa da sabedoria) por ter feito amor com Posseidon (deus do mar).  Atena, a deusa da sabedoria, transformou Medusa em uma terrível criatura, com pele escamosa e cabeleira formada por serpentes. A figura temida tornou-se mortal, seus olhos transformavam em estátua de pedra  todos aqueles que a encarassem.

 Diante do exposto, daquilo que se pode ver, a artista, intelectual sensível, criou para a imagem o símbolo de seus traços e pôs relevo em sua pintura como discurso perceptivo fenomenológico; emprestou ao olhar uma metáfora inconsciente, sugerindo aos olhos do observador, um aguçar da memória em relação à possível semelhança com a figura mitológica a qual nos referimos anteriormente. O arranjo da cabeça, não guarda mais alusão às serpentes; ele, agora, adquiriu pernas e braços para ser uma fisiologia de movimentos. A artista colocou no rosto da figura um pseudo véu no lugar dos olhos; portanto, os olhos, agora, já não mais suscitarão o medo, pois eles já não cumprem o papel de vingança. O olhar, agora, transmutou-se para vir a ser o Ser da figura central em a Dama Ensimesmada.

Desse modo, bem longe do Olympus, mas bem próximo das formas com suas vibrações e emoções, lançamos o nosso olhar para o objeto de arte sem medo de ficarmos petrificados. Assim, podemos atribuir a esta obra os seus efeitos de contemplação; de um olhar que procura ver sem antes eliminar do foco a imagem; um olhar que mesmo em face dos ângulos ou da  planificação das formas, não se sujeita a meras ilusões de composição. Atribuímos para esta obra seu significado maior como possibilidades de sugestões, onde se pode ler na imagem aquilo que  nos revelam os relevos: desde uma simples sedução a qual nos faz instigar a imaginação, até mesmo para um olhar crítico à procura do traço perfeito de acordo com seu tempo histórico. E para os mais atrevidos, sugiro asas ao pensar que num dado momento, o objeto de arte possa levá-los a subtrair da obra de arte o que a ética lhes possa acrescentar: desde uma simples sublimação até mesmo um certo plasmar selvagem, diante dos relevos sutis.

Transgressão ou uma leitura possível da imagem?  O conceito no qual o objeto de arte, Dama Ensimesmada, se apresentou para nós, suscita-nos considerá-lo uma abstração ou uma transfiguração da própria imagem. Porém, dentro da mesma homologia de cores, o matiz do marrom procura uniformizar-se ao atingir o claro dos limites, como mostra a figura com seus aspectos quentes que logo se ocupariam em fazer a diferença no estilo da artista. Esse destaque monocromático surgiu como um processo comum em relação a outras telas do mesmo período, como por exemplo, a obra Rosácea Sensual, a qual se reveste dos mesmos tons de marrom e o mesmo traço de marca simbólica.

 A maior referência desta obra encontra-se nas formas das figuras que vão se delineando e ganhando espaço na definição dos contornos e das transparências; um ponto comum como prenúncio da abstração do que estaria por vir em futuros trabalhos.  O quadro, Dama Ensimesmada, denuncia com sua pose um requinte no perfil da forma retratada e a artista, mesmo em início de carreira, já ousava demonstrar seu traço firme ao denotar sua forte personalidade no manejo do pincel. O rosto de Dama Ensimesmada mostra-nos um perfil de mulher com a boca finamente talhada: uma intenção ou um acaso? Não importa. A figura prende o observador pela irreverência dos motivos sensuais como se pretendesse sussurrar-lhe algo imprevisível. Talvez, a figura, aparentemente plácida não desperte a atenção para um olhar que não deseje interrogá-la, mas, sim, pelo que ela possa simbolizar no olhar do espectador.

Este quadro faz parte de uma produção em que a artista precedia uma fase experimental dos tons de azuis, uma fase que teve como ênfase imagens futuristas. Em outra oportunidade, falaremos dessas obras belíssimas.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A palavra na palavra



 

Por: Vannda Santana

Revisão de texto: Márcia Vital

 

"O poema quer o Outro,

 precisa desse Outro,

precisa de um parceiro.

Ele o procura, adequa-se a ele.
Cada coisa,

 cada pessoa

é um poema

que se dirige ao Outro,

 figura desse Outro."

 

Paul Celan[1]

 

 A dor dorme com as palavras - A poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe – Um livro cujo tema muito me impressionou e, nele, um “viajar” por caminhos "ínvios", caminhos não muito transitáveis. Porém, quem por estes caminhos optar seguir, com certeza, sentirá a firme presença de Mariana Camilo, que com suas sábias palavras sinaliza e conduz o leitor por terras tão distantes e tão estranhas.

 

  A autora afirma que sua análise partiu da investigação do entrelaçamento entre a experiência e a escritura, levando-se em conta a soma do fato de se tratar de um autor que, de maneira trágica, põe fim à própria vida. Ou seja, dentro da poesia de um dos grandes poetas da época havia o conflito como linguagem do paradoxo da existência.

 

A temática de representabilidade da (in)dizibilidade do trauma vivido pelo poeta Celan, depois de Auschwitz, processa um outro dizer, um reinventar o alemão poético diante da própria dor, um recurso sobre o qual a autora expõem seus instrumentos conceituais, apoiando-se nos conceitos da psicanálise. O livro discorre sob o olhar atento de Mariana Camilo e nele destacam-se o conflito dos judeus e a relação do poeta Pau Celan com sua escrita em língua alemã. A autora afirma, ainda, que somente através da escrita como instrumento, pode-se perceber o esforço de se representar o indizível do horror dos campos de concentração.

 

A dor dorme com as palavras  nos aponta um encontro com a palavra – com a palavra da poesia – na poética de Paul Celan. O livro apresenta uma via de mão dupla, onde a autora revela uma linguagem de escritura poética ao lado da história do homem e seu tempo.

 

A semanticidade que evoca o momento originário do tema -  A dor dorme com as palavras – cuja justificativa se formula no subtítulo – A poesia de Paul Celan nos territórios do indizível e da catástrofe, faz da temática o seu intrincado propósito entre a perceptível escritura, a história e a experiência subjetiva, para se inscrever além dos fatos que agregam a singularidade da vida do poeta com seus aspectos mais recorrentes em torno da travessia do século xx e o horror do holocausto com o consagrado poema  ”Todesfuge” (Fuga da morte). Porque não dizer que neste poema já estaria implícita uma das (im)possibilidades da leitura, (CAMILO, p.29).

 

Mariana Camilo retrata o paradoxo da “morte” ao lado do “belo”, onde a palavra se faz testemunhal ao exibir-se como poesia; onde a dor em seus gemidos se faz ouvir mesmo em silêncio; onde a poesia se mostra como arte ao apontar o caos. A poesia celaniana apresenta-se para nós pelas vias das mãos da autora, através de uma requintada linguagem e com elementos que transcendem à própria contradição da dor no mais íntimo do ser da poesia e da realidade e, como tal, se inserem no ser íntimo da poesia. Assim, o ser da palavra passa a ser núcleo da poesia e a escrita se oferece como ser da dor no núcleo da história.

 

O tempo histórico da poesia celaniana guarda um significado com seu nexo íntimo para além do texto, para além de uma constelação de figuras com o seu pathus (BOSI, 2004), fonte de sofrimento e dor como tecido da escritura do texto e trama da linguagem em questão, pela erudição contida; o que nos faz debruçar sobre as palavras e sua etimologia.

 

 Desse modo e, assim, seduzida pela arte do dizer, não pude silenciar neste escrito A dor dorme com as palavras. Aproveito o momento para convidar você, leitor, a adentrar a obra de Paul Celan pela escritura de Mariana Camilo: uma sedução que se dá durante todo o percurso da escrita e, conduzidos por palavras, façamos, todos, uma  outra viagem - com as palavras.

 

E como disse Cecília Meireles, As palavras estão aí, porém minha alma sabe mais (...). Nesse roteiro, para além do retorno à história de Auschwitz, encontraremos a  poesia de Celan, seria uma fusão entre a escrita e a escritura, poderíamos dizer - uma história dentro da história. Na fala de Mariana Camilo “A escrita, como vimos, seria tida comumente como um instrumento por meio do qual se pode perceber o esforço em representar o indizível do horror dos campos de concentração.” Poderíamos dizer, então, que a escrita poética de Celan é uma invocação à arte como processo de libertar a dor de seu aprisionamento psíquico (recurso do dizer) e que surge como resultado da imagem histórica; marca expressa no fazer poético, um imprint do terror deflagrando o sofrimento inquietante que se manifesta em nome da própria dor que faz do homem o poeta. Ou seja, nessa fusão do ser da dor e da arte, ressurge o ser da história na poesia; uma escrita da história do silêncio que se funde no ser do grito que já não mais poderá ser contido e, assim, se  revelar na poética de Paul Celan que, hoje, entre nós, se faz ecoar.

 

A dor dorme com as palavras, assim, se esboça sobre a poesia celaniana; o livro é parte da história do homem, da sociedade e do mundo e, nele, ouvimos, nitidamente, esse grito do silêncio ser rompido por uma poesia absolutamente aporética.  

 

Para terminar, gostaria de expressar minha admiração a Mariana Camilo de Oliveira por esta belíssima obra.

 




[1] Arte Poética: O Meridiano e Outros textos. Editora Cotovia, 1996 – Tradutor: João Barrento e Vanessa Milheiro.